197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele
mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está
assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem
humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O
Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais
pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta de
quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5,
7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para
ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de
deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do
Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa No-va aos pobres» (Lc
4, 18). A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza,
assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres,
porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou:
«Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a
chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que
cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua
misericórdia antes de mais» a eles.[163]
Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos,
chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Fl
2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres,
entendida como uma «forma especial de primado na prática da caridade cristã,
testemunhada por toda a Tradição da Igreja».[164]
Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele
Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza».[165]
Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos
ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores
conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por
eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas
vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir
Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a
ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa
sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em programas
de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um
excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro
«considerando-o como um só consigo mesmo».[166]
Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua
pessoa e, a
partir dela, desejo procurar efectivamente o seu bem. Isto implica
apreciar o
pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura,
com a
sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo,
permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaida-de, mas
porque ele é belo,
independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é
agradável a
outra, depende que lhe dê algo de graça».[167]
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor»,[168]
e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de
qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou
políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos
acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará
possível que «os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”.
Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do
Reino?»[169]
Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio
é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se
naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos
apresenta».[170]
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum
caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres
deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e
prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções
de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa
frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo
eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias
dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades terrenas para que
toda a actividade humana seja transformada pelo Evangelho,[171]
ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça
social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o
zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são
exigidos a todos».[172]
Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns comentários, sem
verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos
caminhos para acolher esta renovada proposta.
Fonte:
Nenhum comentário:
Postar um comentário