sábado, 14 de março de 2015

A serpente de bronze levantada no deserto

LEITURA I - Num 21,4b-9
Naqueles dias,
o povo de Israel impacientou-se
e falou contra Deus e contra Moisés:
«Porque nos fizestes sair do Egito, para morrermos neste deserto?
Aqui não há pão nem água
e já nos causa fastio este alimento miserável».
Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas que mordiam nas pessoas
e morreu muita gente de Israel.
O povo dirigiu-se a Moisés, dizendo:
«Pecamos, ao falar contra o Senhor e contra ti. Intercede junto do Senhor,
para que afaste de nós as serpentes». E Moisés intercedeu pelo povo.
Então o Senhor disse a Moisés:
«Faz uma serpente de bronze e coloca-a sobre um poste. Todo aquele que for mordido e olhar para ela
ficará curado».
Moisés fez uma serpente de bronze e fixou-a num poste.

Quando alguém era mordido por uma serpente, olhava para a serpente de bronze e ficava curado.


AMBIENTE

O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus), apresenta um conjunto de tradições - sem grande preocupação de coerência e de lógica - sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egito. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.

No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira, narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cfr. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cfr. Nm 10,11-21,35); a terceira, apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cfr.
11,1-36,13).

Mais do que uma crônica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por ação de Jahwéh, esse grupo informe de nômadas libertado do Egito foi ganhando, progressivamente, uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a "assembleia santa de Deus". Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.

O episódio que hoje nos é proposto situa-nos no deserto do Neguev, no sul da Palestina. Impedidos de atravessar o território dos Edomitas (cfr. Nm 20,14-21), os hebreus dirigiram-se para o sul pelo "caminho do mar dos Juncos" (Nm 21,4), contornando a fronteira de Edom, em direção ao golfo da Aqaba.


MENSAGEM
O autor do nosso texto conta que o Povo, em marcha pelo deserto, cansado da longa marcha e enfastiado com um alimento sempre igual (o maná), expressou o seu desagrado contra Deus e contra Moisés; e Deus, como castigo, suscitou serpentes venenosas que mordiam os revoltosos e castigavam com a morte a rebelião do Povo... Arrependidos, os israelitas reconheceram o seu pecado e pediram a Deus que os perdoasse... Deus ordenou, então, a Moisés que construísse uma serpente de bronze e a colocasse num poste; quem, depois de mordido, olhasse para essa serpente, seria salvo.

Por detrás desta estranha história está, certamente, a associação feita por inúmeras religiões do antigo Médio Oriente entre a serpente e a vida... Entre os cananeus, por exemplo, a serpente estava ligada a cultos de fertilidade e era objecto de veneração nos lugares altos: esses cultos destinavam-se a assegurar, cada ano, a perpetuação da vida - quer nos campos, quer nos animais, quer nas próprias pessoas. Por outro lado, o uso de amuletos com a figura da serpente servia para proteger das forças maléficas e para curar as doenças e enfermidades (as escavações arqueológicas realizadas em Guezer, Meggido e em Meneiyeh - hoje Timna - muito perto do golfo da Aqaba, permitiram descobrir numerosos exemplares destes amuletos). No Templo de Jerusalém chegou, inclusive, a haver uma serpente de bronze a que os israelitas prestavam culto, e que foi destruída pelo rei Ezequias no âmbito de uma reforma religiosa destinada a purificar a religião jahwista (cfr. 2 Re 18,4)... Na opinião de alguns biblistas, esta história poderá até ser uma narração etiológica (do grego "aitia" - "causa" - e "logos" - "tratado". Uma narração etiológica é uma história destinada a explicar uma realidade atual, a partir de um acontecimento situado num passado mais ou menos remoto) criada para explicar a origem dessa serpente de bronze do Templo de Jerusalém a que os israelitas, durante algum tempo, pediram a vida e a proteção contra as forças maléficas. 

Seja qual for a origem desta história, a verdade é que a serpente de bronze de que o nosso texto fala é, para os israelitas, um símbolo da bondade, da misericórdia e do amor de Deus pelo seu Povo. Com ela, o catequista bíblico diz-nos que as rebeliões de Israel contra Deus e a sua recusa em percorrer caminhos de fidelidade à Aliança, nunca impediram Jahwéh de oferecer ao seu Povo vida em abundância, mesmo quando o Israel não o merecia.

A serpente de bronze levantada sobre um poste, através da qual Deus dá vida ao seu Povo e o protege das forças destruidoras que ele enfrenta ao longo da sua peregrinação pelo deserto, vai proporcionar ao autor do Quarto Evangelho um bom símbolo para expressar a força salvífica que se derrama da cruz de Cristo - o homem levantado ao alto para dar vida a todo o mundo.


ATUALIZAÇÃO
A caminhada feita pelos hebreus pelo deserto não é só uma caminhada geográfica, mas é, também, uma caminhada espiritual. Ao longo do percurso, os acidentes do caminho vão ajudando Israel a libertar-se de uma mentalidade mesquinha, egoísta e comodista e a adquirir uma mentalidade mais madura, mais desprendida, mais responsável, mais consciente e mais santa. Ao longo desse percurso, Deus lá está, intervindo e atuando, demonstrando ao Povo o sem sentido de certas opções e de certas atitudes e convidando-o a ver mais longe, a ser livre, a não se deixar prender por cadeias de egoísmo e de escravidão. A caminhada dos hebreus pelo deserto reproduz a caminhada que fazemos, todos os dias, pela história... Ao longo do nosso percurso pela vida vem, tantas vezes, ao de cima a nossa fragilidade, o nosso egoísmo, a nossa preguiça, o nosso medo de arriscar... E, instalados no nosso comodismo, fechamo-nos em nós mesmos, contentamo-nos com valores efémeros e parciais e recusamo-nos a olhar para a frente, a ir mais além, a escolher os valores exigentes mas duradouros... Esta história diz-nos, contudo, que Deus nunca abandona o seu Povo em caminhada e que está sempre lá, ajudando-o a perceber o sem sentido das suas opções erradas e convidando-o continuamente a nunca parar nessa busca da vida e da verdadeira liberdade. Precisamos, no entanto, de estar permanentemente atentos a esse Deus que nos desafia, que nos educa, que nos indica o caminho.

A história da serpente de bronze que proporciona vida e salvação ao Povo de Deus mostra, de forma muito particular, essa preocupação que Deus nunca deixou de manifestar, ao longo de cada passo da história da salvação, no sentido de oferecer ao seu Povo a vida em abundância. Deus ama o seu Povo com um amor sem limites e mostra esse amor com gestos concretos que proporcionam vida. Não esqueçamos, nunca, esta realidade: Deus ama-nos e vem todos os dias ao nosso encontro para nos oferecer o seu amor e a sua vida. Normalmente, a ação salvadora de Deus não se manifesta em gestos grandiosos, espetaculares, extraordinários; manifesta-se nesses gestos simples que todos os dias partilhamos uns com os outros, na amizade, na solidariedade, no esforço em construir um mundo de justiça e de paz, na luta contra o sofrimento e contra a miséria que roubam a vida ao homem. É preciso aprendermos a ver a presença de Deus que nos oferece vida em abundância em tudo aquilo que acontece de bom à nossa volta.

Muitas vezes o Antigo Testamento fala dos "castigos" que Deus enviou ao seu Povo, após a rebelião e o pecado... No entanto, na perspectiva dos catequistas do Antigo Testamento, esses "castigos" não são uma vingança divina contra as fragilidades do homem, mas são um método pedagógico, um meio a que Deus recorre para educar o seu Povo e para o fazer perceber o sem sentido de certas opções. Nós, iluminados pelo Evangelho e pela visão que Jesus nos oferece do Pai, deveríamos ir mais além e dizer que o castigo não faz parte, em nenhuma circunstância, dos esquemas de Deus... Por vezes, somos confrontados com as consequências das nossas decisões erradas; mas o sofrimento que então nos atinge não é um castigo de Deus... Deus ama-nos com um amor sem limites e apenas quer a nossa felicidade e a nossa plena realização. O sofrimento que resulta das nossas más opções é o resultado lógico de construirmos a nossa existência no egoísmo e na auto-suficiência, à margem das propostas de Deus.

Fonte:

segunda-feira, 2 de março de 2015

A RECAPITULAÇÃO EM CRISTO SEGUNDO IRINEU DE LYON

O bispo de Lião teve que refutar uma heresia muito perigosa para a fé, o gnosticismo, testemunha-o a sua clássica obra, Adversus haereses. Os gnósticos, entre outras coisas, afirmavam que o deus do Antigo Testamento era um demiurgo justo, mas o Salvador Jesus Cristo é bom e justo e se contrapõe ao demiurgo veterotestamentário. Foi justamente esse argumento gnóstico a ocasião para Irineu, num clima de refutação, apresentar uma linha de continuidade entre ambos os testamentos tendo a Cristo como ponto de união. Segundo o santo bispo de Lyon, no Antigo Testamento, Deus educava o povo para que acolhesse a nova aliança no sangue de Cristo. Dentro dessa pedagogia divina, afirma Irineu, o Verbo de Deus “habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito do Pai”. Ambos, Deus e homem habituaram-se em Cristo, na humanidade de Cristo. Contudo, o habituar aconteceu durante a mesma história da salvação: Deus tem um plano que vai se realizando progressivamente, na medida em que esse plano vai acontecendo, Deus e homem habituam-se a estarem juntos. No plano de Deus há, portanto, progresso, segundo o qual uma etapa sucede à outra e cada momento contém continuidade – o mesmo Deus, o único projeto – e uma descontinuidade, já que em cada etapa a graça é mais abundante e universal.

O conceito de progresso em Irineu encontra-se muito unido ao de pedagogia divina e, portanto, à educação através da qual Deus ensinava o seu povo através dos sacramenta, isto é, das manifestações do Verbo através das figuras do que acontecerão ao seu tempo. Entre as manifestações figurativas cabe destacar a importância de acontecimentos como a arca de Noé, a passagem do mar morto, a lei mosaica e a entrada na terra prometida. Progresso e pedagogia marcam, portanto, a grande variedade que acontece dentro do único plano salvador de Deus. Essa pedagogia encontra em Cristo o seu ponto mais alto, pois ele realiza a recapitulação, a ἀνακεφαλαίωσις. No coração da visão da história que tem Irineu encontra-se a encarnação, o acontecimento que é Cristo e que resume todos os outros acontecimentos, ele é uma recapitulação do anterior. Tal ideia já era logicamente conhecida (cf. Ef 1,10): Cristo sintetiza, encabeça, tudo o que existia. O princípio motor da recapitulação, é a própria pessoa de Cristo. Mas Cristo não veio somente para recapiturar tudo o que acontecera antes dele, mas também para conquistar e restaurar o que estava sob o domínio do diabo, veio estabelecer a nova criação. A νακεφαλαίωσις significa, portanto, o começo de algo novo, mas tendo em conta, como base, o que já existia. Esse conceito se entrelaça mais facilmente com a tipologia em torno a Adão, com a oposição entre graça e pecado, e, por outro lado, como progresso, que implica continuidade e descontinuidade.

Irineu segue a mesma linha de São Paulo (cf. Rm 5,12-21) de fazer comparações e descobrir as semelhanças entre Adão e o novo Adão, tanto é assim que a salvação só pode ser concebida como um tomar tudo aquilo que era próprio da natureza de Adão. A modo de exemplificação, veja-se que a especulação de Irineu foi tão longe que ele chegou a afirmar que Adão morreu numa sexta-feira, como Jesus. Como assim? O homem foi criado no sexto dia (cf. Gn 1,26-31). Depois, Irineu faz uma suposição: Adão teria comido a fruta proibida também no sexto dia. Mas como Deus tinha lhe dito, sobre a árvore da ciência do bem e do mal, que no dia em que dela comeres terás que morrer (Gn 2,17), Adão teria morto numa sexta-feira, ou seja, no dia sexto. Essa ideia é cara porque encaixa com a recapitulação: Jesus Cristo, recapitulado tudo em si, recapitulou também a morte ao padecê-la – por obediência ao Pai – no mesmo dia no qual Adão teria morrido. Além disso, como Adão teria sido criado ao sexto dia, a morte de Cristo no sexto dia significaria também a nova criação do homem pelo mistério da páscoa do Redentor. Qual é a finalidade da encarnação? Segundo Irineu é a recuperação da raça humana perdida em Adão. Para o bispo de Lião, a redenção é a causa da encarnação e a encarnação é a condição da redenção.