O bispo de Lião teve que refutar uma heresia muito perigosa para a fé, o
gnosticismo, testemunha-o a sua clássica obra, Adversus haereses. Os gnósticos, entre
outras coisas, afirmavam que o deus do Antigo Testamento era um demiurgo justo, mas
o Salvador Jesus Cristo é bom e justo e se contrapõe ao demiurgo veterotestamentário.
Foi justamente esse argumento gnóstico a ocasião para Irineu, num clima de refutação,
apresentar uma linha de continuidade entre ambos os testamentos tendo a Cristo como
ponto de união. Segundo o santo bispo de Lyon, no Antigo Testamento, Deus educava o
povo para que acolhesse a nova aliança no sangue de Cristo. Dentro dessa pedagogia
divina, afirma Irineu, o Verbo de Deus “habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o
beneplácito do Pai”.
Ambos, Deus e homem habituaram-se em Cristo, na humanidade de Cristo.
Contudo, o habituar aconteceu durante a mesma história da salvação: Deus tem um
plano que vai se realizando progressivamente, na medida em que esse plano vai
acontecendo, Deus e homem habituam-se a estarem juntos. No plano de Deus há,
portanto, progresso, segundo o qual uma etapa sucede à outra e cada momento contém
continuidade – o mesmo Deus, o único projeto – e uma descontinuidade, já que em cada
etapa a graça é mais abundante e universal.
O conceito de progresso em Irineu encontra-se muito unido ao de pedagogia
divina e, portanto, à educação através da qual Deus ensinava o seu povo através dos
sacramenta, isto é, das manifestações do Verbo através das figuras do que acontecerão
ao seu tempo. Entre as manifestações figurativas cabe destacar a importância de
acontecimentos como a arca de Noé, a passagem do mar morto, a lei mosaica e a
entrada na terra prometida. Progresso e pedagogia marcam, portanto, a grande
variedade que acontece dentro do único plano salvador de Deus.
Essa pedagogia encontra em Cristo o seu ponto mais alto, pois ele realiza a
recapitulação, a ἀνακεφαλαίωσις. No coração da visão da história que tem Irineu
encontra-se a encarnação, o acontecimento que é Cristo e que resume todos os outros
acontecimentos, ele é uma recapitulação do anterior. Tal ideia já era logicamente
conhecida (cf. Ef 1,10): Cristo sintetiza, encabeça, tudo o que existia. O princípio motor
da recapitulação, é a própria pessoa de Cristo. Mas Cristo não veio somente para
recapiturar tudo o que acontecera antes dele, mas também para conquistar e restaurar o
que estava sob o domínio do diabo, veio estabelecer a nova criação.
A νακεφαλαίωσις significa, portanto, o começo de algo novo, mas tendo em
conta, como base, o que já existia. Esse conceito se entrelaça mais facilmente com a
tipologia em torno a Adão, com a oposição entre graça e pecado, e, por outro lado, como progresso, que implica continuidade e descontinuidade.
Irineu segue a mesma linha
de São Paulo (cf. Rm 5,12-21) de fazer comparações e descobrir as semelhanças entre
Adão e o novo Adão, tanto é assim que a salvação só pode ser concebida como um
tomar tudo aquilo que era próprio da natureza de Adão.
A modo de exemplificação, veja-se que a especulação de Irineu foi tão longe que
ele chegou a afirmar que Adão morreu numa sexta-feira, como Jesus. Como assim? O
homem foi criado no sexto dia (cf. Gn 1,26-31). Depois, Irineu faz uma suposição:
Adão teria comido a fruta proibida também no sexto dia. Mas como Deus tinha lhe
dito, sobre a árvore da ciência do bem e do mal, que no dia em que dela comeres terás
que morrer (Gn 2,17), Adão teria morto numa sexta-feira, ou seja, no dia sexto. Essa
ideia é cara porque encaixa com a recapitulação: Jesus Cristo, recapitulado tudo em si,
recapitulou também a morte ao padecê-la – por obediência ao Pai – no mesmo dia no
qual Adão teria morrido. Além disso, como Adão teria sido criado ao sexto dia, a morte
de Cristo no sexto dia significaria também a nova criação do homem pelo mistério da
páscoa do Redentor.
Qual é a finalidade da encarnação? Segundo Irineu é a recuperação da raça
humana perdida em Adão. Para o bispo de Lião, a redenção é a causa da encarnação e a
encarnação é a condição da redenção.
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