segunda-feira, 29 de junho de 2015

A importância dos leigos na III Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) - PUEBLA

A III Conferência Episcopal latino-Americana em Puebla no México sublinha a importância da Igreja particular e sobretudo as comunidades eclesiais de base. Na ocasião, Puebla acentua o papel dos bispos em se comprometerem em promover, orientar e acompanhar segundo o espírito de Medellín e os critérios de Evangelii nuntiandi; a relação de comunhão entre os diversos membros da Igreja; valorizando decididamente os leigos e as mulheres, e situá-los nos ministérios eclesiais no horizonte da missão.
Ao compreender o povo de Deus como sacramento universal de salvação, “está inteiramente a serviço da comunhão dos homens com Deus e do gênero humano entre si. A Igreja é, portanto, um povo todo ministerial. Seu modo próprio de servir é evangelizar; é um serviço que só ela pode prestar. Determina sua identidade e a originalidade de sua contribuição[1].” A evangelização, com efeito, é o grande ministério ou serviço que a Igreja presta ao mundo[2].
O Documento de Puebla a importância da função ministerial presente na Igreja. “Desde o princípio, houve na Igreja diversidade de ministérios, cuja finalidade é a evangelização. Os escritos do Novo Testamento revelam a vitalidade da Igreja, que se manifestou em múltiplos serviços. Assim, São Paulo menciona, entre outros, os seguintes: a profecia, a diaconia, o ensino, a exortação, o dar esmolas, o presidir, o exercício da misericórdia; e, em outros contextos, fala de ministérios como as palavras da sabedoria, do discernimento de espíritos e alguns outros. Em outros escritas da Novo Testamento, descrevem-se igualmente vários ministérios[3]”.
Ao enfatizar uma Igreja que manifesta sua vida de comunhão e participação a serviço evangelizador nos diversos aspectos no cotidiano da vida do homem, constata-se o exercício dos ministérios ordenados, como o diaconato permanente, não ordenados e outros serviços, como os de proclamadores da Palavra e animadores de comunidades. Nota-se também uma melhoria na colaboração entre sacerdotes, religiosos e leigos[4]. Puebla, apoiando-se na Evangelii nuntiandi, afirma que: “É o Espírito Santo que está suscitando hoje na Igreja 'uma diversidade de ministérios, também exercidos por leigos, capazes de rejuvenescer e reforçar o dinamismo evangelizador da Igreja (EN73) [5]”.
Com efeito, todos são chamados a corresponder a uma vocação que lhe permita um amadurecimento eclesial. “Optar por uma vocação ministerial e evangelizadora na Igreja não é coisa que dependa exclusivamente da iniciativa pessoal. Primordialmente, é chamamento gratuito de Deus, vocação divina, que se deve perceber graças a um discernimento, escutando o Espírito Santo e colocando-se diante do Pai, por Cristo, e diante da comunidade concreta e histórica à qual se há de servir. Outrossim, é fruto e expressão da vitalidade e madureza de toda a comunidade eclesial[6]”.
De acordo com a vocação que lhe compete, o documento de Puebla afirma: “A Igreja, para o cumprimento de sua missão, conta com diversidade de ministérios. Ao lado dos ministérios hierárquicos, a Igreja reconhece um lugar aos ministérios não ordenados. Portanto, também os leigos podem sentir-se chamados ou ser chamados a colaborar com seus pastores no serviço à comunidade eclesial, para o crescimento e a vida da mesma, exercendo ministérios diversos, conforme a graça e os carismas que ao Senhor aprouver conceder-lhes (EN73) [7]”. A diversidade de ministérios, estendidos também aos leigos, confiava uma responsabilidade e um reconhecimento maior a eles conferido. São “serviços realmente importantes na vida eclesial (p. ex., no plano da Palavra, da liturgia ou da direção da comunidade), exercidos por leigos com estabilidade e que foram reconhecidos publicamente e a eles confiados por quem tem a responsabilidade na Igreja”.[8]
Os bispos presentes em Puebla ratificam a importância dos ministérios conferidos aos leigos, porém acentuam também a importância em identificar o papel de cada cristão inserido na Igreja de acordo com a vocação e a aptidão de cada um. “Não clericalizam aqueles que os recebem: estes continuam sendo leigos com uma missão fundamental de presença no mundo; requer-se uma vocação ou aptidão ratificada pelos pastores; orientam-se para a vida e crescimento da comunidade eclesial, sem perder de vista o serviço que esta deve prestar no mundo; são variados e diversos, de acordo com os carismas dos chamados e as necessidades da comunidade; esta diversidade, porém, deve coordenar-se de acordo com sua relação com o ministério hierárquico[9].”
Por isso, em relação, ao exercício desses ministérios, Puebla alerta para os perigos que devem ser evitados: “(a) a tendência à clericalização dos leigos ou a de reduzir o compromisso leigo àqueles que recebem ministérios, deixando de lado a missão fundamental do leigo, que é a sua inserção nas realidades temporais e em suas responsabilidades familiares; (b) não se devem promover tais ministérios como estímulo puramente individual, fora dum contexto comunitário; (c) O exercício de ministérios por parte de alguns leigos não pode diminuir a participação ativa dos demais[10]”.
Por fim, a III Conferência Episcopal Latino-Americana enfatiza o papel da mulher presente na Igreja. As mulheres teriam assumido (e ainda assumem) a maior parte dos ministérios nas Igrejas locais. Puebla lembra a participação da mulher na historia da salvação e a participação dela na missão da Igreja. A aptidão da mulher é visível desde em organismos de planejamento, coordenação pastoral, catequese e etc[11]. É o leigo, representado pela força feminina, que aumenta a atividade eclesial.



[1] Puebla, 270
[2] Ibid, 679
[3] Ibid, 680
[4] Ibid, 625
[5] Ibid, 858
[6] Ibid, 860
[7] Ibid, 804
[8] Ibid, 805
[9] Ibid, 811-814
[10] Ibid, 815-817
[11] Ibid, 841-845

quarta-feira, 3 de junho de 2015

História da Solenidade de Corpus Christi

No final do século  XIII surgiu em Lieja, Bélgica, um Movimento Eucarístico cujo centro foi a  Abadia de Cornillon fundada em 1124 pelo Bispo Albero de Lieja. Este movimento deu origem a vários costumes eucarísticos, como por exemplo a Exposição e Bênção do Santíssimo Sacramento, o uso dos sinos durante a elevação na Missa e a festa do  Corpus Christi.

Santa Juliana de Mont Cornillon, naquela época priora da Abadia, foi a enviada de Deus para propiciar esta Festa. A santa nasceu em Retines perto de Liège, Bélgica em 1193. Ficou órfã muito pequena e foi educada pelas freiras Agostinas em Mont Cornillon. Quando cresceu, fez sua profissão religiosa e mais tarde foi superiora de sua comunidade. Morreu em 5 de abril de 1258, na casa das monjas Cistercienses em Fosses e foi enterrada em Villiers.

Desde jovem, Santa Juliana teve uma grande veneração ao Santíssimo Sacramento. E sempre esperava que se tivesse uma festa especial em sua honra. Este desejo se diz ter intensificado por uma visão que teve da Igreja sob a aparência de lua cheia com uma mancha negra, que significada a ausência dessa solenidade.

Juliana comunicou estas aparições a Dom Roberto de Thorete, o então bispo de Lieja, também ao douto Dominico Hugh, mais tarde cardeal legado dos Países Baixos e Jacques Pantaleón, nessa época arquidiácolo de Lieja, mais tarde o Papa Urbano IV.

O bispo  Roberto focou impressionado e, como nesse tempo os bispos tinham o direito de ordenar festas para suas dioceses, invocou um sínodo em 1246 e ordenou que a celebração fosse feita no ano seguinte, ao mesmo tempo o Papa ordenou, que um monge de nome  João escrevesse o  ofício para essa ocasião. O decreto está preservado em Binterim (Denkwürdigkeiten, V.I. 276), junto com algumas partes do ofício.

Dom Roberto não viveu para ser a realização de sua ordem, já que morreu em 16 de outubro de 1246, mas a festa foi celebrada pela primeira vez no ano seguinte a quinta-feira posterior à festa  da Santíssima Trindade. Mais tarde um bispo alemão conheceu os costume e a o estendeu por toda a atual Alemanha.

O Papa Urbano IV, naquela época, tinha a corte em Orvieto, um pouco ao norte de Roma. Muito perto desta localidade está  Bolsena, onde em 1263 ou 1264 aconteceu o Milagre de Bolsena: um sacerdote que celebrava a Santa Missa teve dúvidas de que a  Consagração fosse algo real., no momento de partir a Sagrada Forma, viu sair dela sangue do qual foi se empapando em seguida o corporal. A venerada relíquia foi levada em procissão a Orvieto em 19 junho de 1264. Hoje se conservam os corporais -onde se apóia o cálice e a patena durante a Missa- em Orvieto, e também se pode ver a pedra do altar em Bolsena, manchada de sangue.

O Santo Padre movido pelo prodígio, e a petição de vários bispos, faz com que se estenda a festa do Corpus Christi a toda a Igreja por meio da bula "Transiturus" de 8 setembro do mesmo ano, fixando-a para a quinta-feira depois da oitava de Pentecostes  e outorgando muitas indulgências a todos que participassem da Santa Missa.

A morte do Papa Urbano IV (em 2 de outubro de 1264), um pouco depois da publicação do  decreto, prejudicou a difusão da festa. Mas o  Papa Clemente V tomou o assunto em suas mãos e, no concílio geral de  Viena (1311), ordenou mais uma vez a adoção desta festa. Em 1317 é promulgada uma recopilação de leis -por João XXII- e assim a festa é estendida a toda a Igreja.

Nenhum dos decretos fala da procissão com o  Santíssimo como um aspecto da celebração. Porém estas procissões foram dotadas de indulgências pelos Papas Martinho V e Eugênio IV, e se fizeram bastante comuns a partir do século XIV.

A festa foi aceita em Cologne em 1306; em Worms a adotaram em 1315; em Strasburg em 1316. Na Inglaterra foi introduzida da Bélgica entre 1320 e 1325. Nos Estados Unidos e nos outros países a solenidade era celebrada no domingo depois do domingo da Santíssima Trindade. Na Igreja grega a festa de Corpus Christi é conhecida nos calendários dos sírios, armênios, coptos, melquitas e os rutínios da Galícia, Calábria e Sicília.

Finalmente, o Concílio de Trento declara que muito piedosa e religiosamente foi introduzida na Igreja de Deus o costume, que todos os anos, determinado dia festivo,  seja celebrado este excelso e venerável sacramento com singular veneração e solenidade; e reverente e honorificamente seja levado em procissão pelas ruas e lugares públicos. Nisto os cristãos expressam sua gratidão e memória por tão inefável e verdadeiramente divino benefício, pelo qual se faz novamente presente a vitória e triunfo sobre a morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 Fonte:

segunda-feira, 1 de junho de 2015

História cíclica de Maquiavel

A concepção de Historia magistra vitae soa-nos como uma dessas excentricidades culturais perdidas nas profundezas abissais dos séculos. É verdade. O gênero é algo que não compreendemos direito, algo exótico e improvável, quando avaliado apenas pelo prisma de nossos valores. Como seria possível pensar, depois de Heráclito e de sua teoria do movimento, que as circunstâncias se repetem, se não em idênticas, ao menos em condições semelhantes? A imagem de um homem cruzando as águas de um rio também nos chega de um passado distante, e ainda hoje define a nossa concepção de história. Isto parece demonstrar que não somos tão originais quanto pensamos. A metáfora de Heráclito que interiorizamos — mesmo sem nos darmos conta disso —, marca, por contraste, a nossa posição contra o gênero Historia magistra vitae. Acreditamos na irreversibilidade do tempo e a idéia de alteridade ajuda-nos a estabelecer a diferença qualitativa do que compreendemos como a dinâmica dos “tempos históricos”, segundo a definição de Reinhart Koselleck. Deste modo, o comércio das idéias, representado pela natureza transmissível da experiência, remete-nos a uma idéia de continuidade que reúne num bloco monolítico as três dimensões do tempo.
Assim é que a idéia de se reproduzir efeitos positivos no presente mirando em ações ocorridas no passado coloca-nos diante de um objeto — quero dizer, de uma concepção de história — que exerce a estranha atração de um imã. Então, uma lição que podemos extrair da idéia de um movimento não-linear da história, de uma espécie de eterno retorno do mesmo, é a de que devemos evitar a atitude a-histórica de considerar a ausência de uma idéia de progresso como um elemento que diminui e/ou barateia a relevância da história pensada por Maquiavel.
Contra esta tendência, que sabemos não ser sempre consciente entre seus comentadores, seria mais apropriado identificar as especificidades deste modelo de compreensão do tempo histórico, que dá origem a desdobramentos centrais no nível de uma teoria da ação em Maquiavel. De onde vem esta matriz de pensamento histórico, em quais circunstâncias históricas o modelo foi gerado, quais os seus traços distintivos, os elementos de suas transformações e por quais vias este gênero atinge o século XVI, e bem mais além. Para recordar R. Koselleck, numa excelente definição do gênero, e numa avaliação de sua longevidade, “... l’histoire nous laisse libres de répéter les succès du passé au lieu de tomber présentement dans vielles erreurs. C’est ainsi que l’histoire a fait figure pendant deux millénaires d’école (...). Jusqu’au XVIIIe siècle, l’emploi de notre expression (Historia magistra vitae) est um indice infaillible de la permanence de la nature humaine dont les histoires se prêtent parfaitement à servir de preuves toujours réutilisables d’enseignement moraux, théologiques, juridiques et politiques”.[1] Os exemplos do passado formam um conjunto de lições necessárias e um útil campo de aprendizagem. No século XVIII Voltaire — que é notado hoje como expressão incontestável de historiador moderno — afirmava que a sua História de Carlos XII serviria para mostrar o que deveria ser o exemplo de um príncipe. Neste caso, ele utilizaria as ações do rei da Suécia como fonte de inspiração para demonstrar a todos, mas principalmente aos poderosos de seu tempo, quais eram os vícios a serem evitados pelo príncipe ideal. Mais tarde ele escreveu a História da Rússia sob o império de Pedro, o Grande, obra na qual aprofundou as contradições do anti-herói Carlos XII.
O fato é que se aponta, com freqüência, a falta de “sentido histórico” no pensamento de Maquiavel. Mas, a rigor, o que significa isto? Ora, esperar encontrar na obra de Maquiavel uma idéia desenvolvida de progresso é uma atitude anacrônica. Debitar esta “falha” como atestado de insuficiência da perspectiva do autor o é igualmente. Se a natureza humana é igual em toda parte — como ele acreditava —, e se esta é a ferramenta analítica que faz a cadência de seu tempo cíclico, aí já se encontra implícita a sua noção de sentido histórico, o que freqüentemente se tem negado a Maquiavel. A diferença pura e simplesmente está na evidência de que o seu sentido histórico não se assemelha ao nosso. E não é isto o que importa saber quando se pretende compreender idéias em contexto? Mais importante do que lamentar a ausência de tais elementos é tentar identificar as razões de sua ausência, o que ocorre com bem menor freqüência.
Extrair a concepção cíclica do tempo da teoria da ação política de Maquiavel é como retirar o ar que ele respira. O resultado prático é que o seu pensamento histórico e político — e é bom lembrar que Maquiavel foi sobretudo historiador e não propriamente filósofo político — ficaria sem atmosfera. Então, a dita falta de sentido histórico na obra do autor dos Discursos não deve ser vista como uma limitação ou uma barreira, mas como o leito natural por onde tem curso livre as suas idéias, tão circunstanciais quanto a visão mecânica de Hobbes ou a de qualquer outro autor igualmente marcado pelas contingências de seu tempo. Aliás, é de se pensar qual teria sido a fortuna crítica de Maquiavel se ele tivesse pensado a história fora dessa moldura rígida de uma natureza humana eterna. Uma resposta plausível, dentre outras, é que ele não seria o Maquiavel que se conhece e, certamente, seria bem menos interessante do que é de fato.
A história exemplar de Maquiavel nos coloca frente a uma noção conservadora, a de que as tradições são uma conquista dos homens e que é preciso conservá-las. Mais do que isto, as tradições formam a base para a estabilidade da ordem pública. Há nesse argumento princípios de sua teoria do conhecimento: ter acesso aos móveis reais dos grandes vultos, compreender os seus autênticos desígnios, eis uma fonte segura para se aproximar do melhor modelo de República. A vida fugaz das formas políticas no tempo de Maquiavel cobrava rapidez e objetividade nas decisões. Era preciso aprender rápido e cercar as ações de uma margem de segurança. Somente os grandes exemplos asseguram esta posição confortável. Para Maquiavel, os mestres do passado representam esta base empírica inestimável para uma avaliação correta da realidade no tempo presente que, devido ao instável contexto de Florença e da Itália, podem selar o destino de todos. Mas, se de fato os exempla são fonte segura do aprendizado político, é preciso que o sujeito do conhecimento possua virtudes para aplicar corretamente as lições do passado. Não basta apenas a sabedoria dos mestres em meio à estrada tortuosa e escorregadia da realidade: “L’exortation de Machiavel à admirer les Anciens mais aussi à les imiter, donna toute sa force à la résolution de continuer à tirer profit de l’histoire, parce qu’elle liait en une nouvelle unité pensée exemplaire et pensée empirique”.[2] A nau da República é uma engrenagem complexa e requer pulso, além de sabedoria. Se faltar energia ao timoneiro o navio passa a circular em zona perigosa, navegando numa margem estreita entre os rochedos e o abismo. Assim é que será preferível um tirano resoluto a um governo misto confuso.
Maquiavel viveu numa época de notáveis realizações da pesquisa histórica. Como analisa George Huppert em seu The Idea of Perfect History, o século XVI fundou a preocupação com a crítica rigorosa das fontes de pesquisa e o intercâmbio com outras disciplinas, com ênfase sobre a filologia, que permitiu a Lorenzo Valla desbaratar a fraudulenta Doação de Constantino. Maquiavel foi tocado por este movimento de renovação da história que, inclusive, nasceu nas cidades-Estado italianas do Renascimento. Mas não é verdade que esta idéia de uma história perfeita se insurge contra as lendas e os mitos? Então, como explicar que alguns personagens de Maquiavel são figuras lendárias? Isto tem chamado a atenção de seus comentadores. De fato, Rômulo e Teseu aparecem como figuras modelares de príncipes. É razoável supor que estas criaturas mitológicas são abstrações intelectuais utilizadas pelo autor para ensinar o exemplo da virtude, ou seja, aquilo que se espera de personagens de carne e osso. Neste caso, importa mais o exemplo do que a corporificação histórica do modelo. Parte-se do princípio de que, em todas as épocas, os príncipes vivem os mesmos dramas e dilemas. Portanto, sempre será possível reutilizar as atitudes bem sucedidas dos outros
Contudo, se Maquiavel acreditou nas possibilidades de uma história perfeita, segundo o modelo humanista, quais são os traços predominantes de seu método de análise? A crítica de sua documentação — os textos clássicos com Cícero, Políbio e Tito Lívio à frente — combinam as técnicas disponíveis em seu tempo com uma visão idiossincrática da realidade. É dessa idiossincrasia que surgem as cenas realistas dos espelhos de príncipes que encontramos tanto nos Discursos quanto em O Príncipe. É realmente impossível passar por cima das máximas e preceitos que, no limite, fazem recordar Plutarco e suas Vidas Paralelas. Trata-se dos exempla tão característicos deste gênero antigo de literatura em relação ao qual Maquiavel é seguidor e re-criador paradigmático. Há de fato quem tenha pensado que seus dois livros mais importantes não passem de uma obra característica do gênero.[3]
Existem autores que reduzem os textos de Maquiavel a um espelho do príncipe, a um mero eco modernizado do passado, com a diferença apenas de terem sido concebidos com mais vigor, atualidade e talento. Apesar disso, o “estilo, o conteúdo e a intenção” não seriam diferentes da tradição. É uma tentação pensar dessa forma, porque há muitas evidências destes traços em seus textos. Mas, se assim fosse, a tradição interpretativa de Maquiavel não teria chegado ao ponto que chegou. Há realmente algo mais em Maquiavel, um algo mais que o transformou numa galáxia do conhecimento, em contínua expansão. Mas, retornando ao método de análise empregado por Maquiavel, é preciso incluir nele as leis gerais, que remetem à idéia de uma natureza humana fixa no tempo e no espaço, conforme o cristalino exemplo da metáfora natural que citamos em epígrafe. Este modelo culmina com alguns vigorosos golpes de retórica, aplicados estrategicamente como expediente de arrebatamento do leitor. Estes golpes de retórica são as máximas extraídas dos clássicos, que carregam em si o valor moral insofismável dessa ou daquela ação exemplar.

[1] Koselleck, R. Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: EHESS, 1990. p. 38s.
[2] Id., ibid., p. 40.
[3] Cf. Berlin, I. “La originalidad de Maquiavelo”. In: ——. Contra la corriente. Ensayos sobre historia de las ideas. México: FCE, 1992. p. 87

Fonte: