terça-feira, 17 de maio de 2016

O título Logos aplicado a Jesus

Somente no prólogo do quarto evangelho é que São João atribui a Jesus o título de logos. Isto significa que, para o Novo Testamento, tal título não ocupa um lugar central como o Filho do Homem, como Cristo, etc. A aplicação do título de Logos para Jesus, em João, tem a finalidade de preencher uma lacuna deixada pelos evangelhos sinóticos, a saber: todos eles apresentam Jesus a partir da criação, João pretende apresentar Jesus desde toda a eternidade, superando até mesmo o livro de Gênesis, pois, não inclui Jesus como obra criada por Deus, mas sim, como co-autor ao lado do Pai em toda a obra da criação. Assim, este título se torna indispensável para compreender o autor que pretende apresentar a relação de Deus com Jesus e a sua pré-existência,10 em todo o seu relato.

Por outro lado, sabemos que Logos significa Palavra, e nesse sentido, afirmar que Jesus é o Logos permite-nos afirmar que Jesus é a Palavra. Tal raciocínio é análogo àquele que nos leva a afirmar que Jesus é o Caminho, a Verdade, a Vida, Deus feito homem. Assim, não se pode afirmar com facilidade que o Logos não tenha sido tratado em outros escritos do Novo Testamento. Ao dizer que Jesus é a Palavra, de maneira indireta, estamos afirmando que Jesus é o Logos, e, neste sentido, o Novo Testamento nos apresenta Jesus como a Palavra viva de Deus em vários pontos dos seus escritos. No evangelho de João, portanto, merecem destaque os significados dos seguintes termos: “Palavra” e “Verbo”. Ora, enquanto “Palavra de Deus”, o Logos quer significar o conteúdo da revelação e da criação (Jo 1,3.18; 1Cor 8,6; Cl 1,17; Hb 1,1-2). A palavra evidencia a criação de todas as coisas. É um sinal que expressa a vontade e a força de Deus, sua sabedoria e ação (1Cor 1,30; Ef 3,8-11; Cl 2,2-3). Ela também revela os propósitos escritos no coração de Deus (Jo 1,3; Cl 1,18; 4,34; 5,30; 6,38).

O Logos é o próprio verbo divino, aquele que dá sentido a todas as coisas (Cl 1,17).11 O evangelho de São João tem uma intenção: traçar uma linha direta entre a vida humana de Jesus como o centro da revelação plena da verdade divina. Deus, que por sua vez é incansável, torna-se atingível pela Palavra: “primeiro na criação; depois na encarnação, porque este Logos chega a converter-se em homem. E é então que sabemos que Jesus de Nazaré e o Logos se identificam.”

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sábado, 7 de maio de 2016

Sacerdote in persona Christi

Para entender o que significa agir in persona Christi Capitis  na pessoa de Cristo Cabeça  por parte do sacerdote, e para compreender inclusive quais consequências derivam da tarefa de representar o Senhor, especialmente no exercício destes três ofícios, antes de tudo é preciso esclarecer o que se entende por "representação". O sacerdote representa Cristo. O que quer dizer, o que significa "representar" alguém? Na linguagem comum, quer dizer  geralmente  receber uma delegação de uma pessoa para estar presente no seu lugar, falar e agir no seu lugar, porque quem é representado está ausente da acção concreta. Perguntamo-nos: o sacerdote representa o Senhor do mesmo modo? A resposta é não, porque na Igreja Cristo nunca está ausente, a Igreja é o seu corpo vivo e a Cabeça da Igreja é Ele, presente e em acção nela. Cristo nunca está ausente, aliás está presente de um modo totalmente livre dos limites de espaço e tempo, graças ao evento da Ressurreição, que contemplamos de maneira especial neste período de Páscoa.

Portanto, o sacerdote que age in persona Christi Capitis e em representação do Senhor, nunca age em nome de um ausente, mas na própria Pessoa de Cristo Ressuscitado, que se torna presente com a sua acção realmente eficaz. Age de facto e realiza o que o sacerdote não poderia fazer: a consagração do vinho e do pão para que sejam realmente presença do Senhor, a absolvição dos pecados. O Senhor torna presente a sua própria acção na pessoa que realiza tais gestos. Estas três tarefas do sacerdote  que a Tradição identificou nas diversas palavras de missão do Senhor: ensinar, santificar e governar  na sua distinção e profunda unidade são uma especificação desta representação eficaz. São na verdade as três acções do Cristo Ressuscitado, o mesmo que hoje na Igreja e no mundo ensina e assim cria fé, reúne o seu povo, cria presença da verdade e constrói realmente a comunhão da Igreja universal; e santifica e guia.

A primeira tarefa sobre a qual gostaria de falar hoje é o munus docendi, isto é, ensinar. Hoje, em plena emergência educativa, omunus docendi da Igreja, exercido concretamente através do ministério de cada sacerdote, resulta particularmente importante. Vivemos numa grande confusão acerca das escolhas fundamentais da nossa vida e das interrogações sobre o que é o mundo, de onde vimos, para onde vamos, o que devemos fazer para fazer o bem, como devemos viver, quais são os valores realmente pertinentes. Em relação a tudo isto existem muitas filosofias contrastantes, que nascem e desaparecem, criando confusão sobre as decisões fundamentais, como viver, porque já não sabemos, comummente, do que e para que somos feitos e para onde vamos. Nesta situação realiza-se a palavra do Senhor, que teve compaixão da multidão porque eram como ovelhas sem pastor (cf.Mc 6, 34). O Senhor tinha feito esta constatação quando viu os milhares de pessoas que o seguiam no deserto porque, na diversidade das correntes daquele tempo, já não sabiam qual fosse o verdadeiro sentido da Escritura, o que dizia Deus. O Senhor, movido pela compaixão, interpretou a palavra de Deus, ele mesmo é a palavra de Deus, e assim deu uma orientação. Esta é a função in persona Christi do sacerdote: tornar presente, na confusão e na desorientação dos nossos tempos, a luz da palavra de Deus, a luz que é o próprio Cristo neste nosso mundo. Por conseguinte, o sacerdote não ensina as próprias ideias, uma filosofia que ele mesmo inventou, encontrou ou que gosta; o sacerdote não fala de si mesmo, não fala por si mesmo, talvez para criar admiradores ou um partido próprio; não diz coisas próprias, invenções suas mas, na confusão de todas as filosofias, o sacerdote ensina em nome de Cristo presente, propõe a verdade que é o próprio Cristo, a sua palavra, o seu modo de viver e de ir em frente. Para o sacerdote vale o que Cristo disse sobre si mesmo: "A minha doutrina não é minha" (Jo 7, 16); isto é, Cristo não se propõe a si mesmo, mas, como Filho, é a voz, a palavra do Pai. Também o sacerdote deve sempre dizer e agir assim: "a minha doutrina não é minha, não difundo as minhas ideias ou o que me agrada, mas são boca e coração de Cristo e torno presente esta única e comum doutrina, que criou a Igreja universal e que cria vida eterna".

Este facto, que o sacerdote não inventa, não cria e não proclama ideias próprias porque a doutrina que anuncia não é sua, mas de Cristo, por outro lado, não significa que ele seja neutro, quase como um porta-voz que lê um texto do qual, talvez, nem se apropria. Também neste caso, vale o modelo de Cristo, que disse: Eu não sou para mim e não vivo para mim, mas venho do Pai e vivo para o Pai. Portanto, nesta identificação profunda, a doutrina de Cristo é a do Pai e Ele mesmo é um só com o Pai. O sacerdote que anuncia a palavra de Cristo, a fé da Igreja e não as próprias ideias, deve dizer também: Eu não vivo por mim e para mim, mas vivo com Cristo e para Cristo e portanto tudo aquilo que Cristo nos disse torna-se a minha palavra não obstante não seja minha. A vida do sacerdote deve identificar-se com Cristo e, deste modo, a palavra não própria torna-se, contudo, uma palavra profundamente pessoal. Santo Agostinho, sobre este tema, falando acerca dos sacerdotes, disse: "E nós o que somos? Ministros (de Cristo), seus servidores; porque o que distribuímos a vós não é nosso, mas tiramo-lo da sua despensa. E inclusive nós vivemos dela, porque somos servos como vós" (Discurso 229/e, 4).

O ensinamento que o sacerdote é chamado a oferecer, as verdades da fé, devem ser interiorizadas e vividas num intenso caminho espiritual pessoal, de forma que realmente o sacerdote entre numa profunda, interior comunhão com o próprio Cristo. O sacerdote crê, acolhe e procura viver, antes de tudo como próprio, quanto o Senhor ensinou e a Igreja transmitiu, naquele percurso de identificação com o próprio ministério do qual São João Maria Vianney é testemunha exemplar (cf. Carta para a proclamação do Ano sacerdotal). "Unidos na mesma caridade  afirma ainda Santo Agostinho  todos somos auditores daquele que é para nós no céu o único Mestre" (Enarr. in Ps. 131, 1, 7).

Por conseguinte, com frequência a voz do sacerdote poderia parecer "a de um que grita no deserto" (Mc 1, 3), mas exactamente nisto consiste a sua força profética: em nunca ser homologado, nem homologável, a alguma cultura ou mentalidade dominante, mas em mostrar a única novidade capaz de produzir uma autêntica e profunda renovação do homem, ou seja, que Cristo é o Vivente, é o Deus próximo, o Deus que age na vida e para a vida do mundo e nos doa a verdade, o modo de viver.
Na preparação atenta da pregação festiva, sem excluir a dos dias úteis, no esforço de formação catequética, nas escolas, nas instituições académicas e, de modo especial, através daquele livro não escrito que é a própria vida, o sacerdote é sempre "professor", ensina. Mas não com a presunção de quem impõe as próprias verdades, mas com a humilde e jubilosa certeza de quem encontrou a Verdade, foi capturado e transformado por ela, e por conseguinte não pode deixar de a anunciar. Com efeito, ninguém pode escolher o sacerdócio por si mesmo, não é um modo para alcançar a segurança na vida, para conquistar uma posição social: ninguém pode obtê-lo nem procurá-lo sozinho. O sacerdócio é resposta ao chamamento do Senhor, à sua vontade, para se tornar anunciadores não de uma verdade pessoal, mas da sua verdade.

O Povo cristão pede para escutar dos nossos mestres a genuína doutrina eclesial, através da qual se possa renovar o encontro com Cristo que doa a alegria, a paz e a salvação. A Sagrada Escritura, os escritos dos Padres e dos Doutores da Igreja e o Catecismo da Igreja Católica constituem, a este propósito, pontos de referência imprescindíveis no exercício do munus docendi, tão essencial para a conversão, o caminho de fé e a salvação dos homens. "Ordenação sacerdotal significa: estar imersos (...) na Verdade" (Homilia da Missa Crismal, 9 de Abril de 2009), aquela Verdade que não é simplesmente um conceito ou um conjunto de ideias a transmitir e assimilar, mas que é a Pessoa de Cristo, com a qual, pela qual e na qual viver e assim, necessariamente, nasce também a actualidade e a compreensão do anúncio. Só esta consciência de uma Verdade feita Pessoa na Encarnação do Filho justifica o mandato missionário: "Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a humanidade" (Mc 15, 16). Só se se trata da Verdade ela está destinada a toda a humanidade, não é uma imposição de algo, mas a abertura do coração àquilo pelo qual se foi criado.

O Senhor confiou aos Sacerdotes uma grande tarefa: ser anunciadores da Sua Palavra, da Verdade que salva; ser a sua voz no mundo para levar aquilo que beneficia o bem verdadeiro das almas e o autêntico caminho de fé (cf. 1 Cor6, 12). São João Maria Vianney seja exemplo para todos os Sacerdotes. Ele era homem de grande sabedoria e heróica força ao resistir às pressões culturais e sociais do seu tempo para poder guiar as almas para Deus: simplicidade, fidelidade e proximidade eram as características essenciais da sua pregação, transparência da sua fé e da sua santidade. O Povo cristão era edificado e, como acontece para os autênticos mestres de todos os tempos, reconhecia nele a luz da Verdade. Em definitiva, reconhecia nele o que se deveria reconhecer sempre num sacerdote: a voz do Bom Pastor.

Fonte:

Eucaristia, sinal visível da presença de Deus


A recepção de Jesus Cristo sacramentado sob as espécies de pão e vinho na sagrada Comunhão significa e verifica o alimento espiritual da alma. E assim, enquanto que nela se dá a graça invisível sob espécies visíveis, guarda razão de sacramento. Jesus ao instituir a Eucaristia lhe confere intrinsecamente o valor sacramental, pois através dela Ele nos transmite sua graça, sua presença viva. Por isso, a Eucaristia é o mais importante dos sacramentos, de onde saem e para onde se dirigem todos os demais, centro da vida litúrgica, expressão e alimento da comunhão cristã.

Sacramento de Unidade. Ao nos referirmos à Eucaristia como Comunhão, estamos proclamando nossa união entre todos os cristãos e nossa adesão à Igreja com Jesus. Por isso, a Eucaristia é um sacramento de unidade da Igreja, e sua celebração só é possível onde há uma comunidade de fiéis.

Sacramento do amor fraterno. Na mesma noite em que Jesus instituiu a Eucaristia, instituiu o mandamento do amor. Portanto, a Eucaristia e o amor aos demais têm que andar sempre juntos. Jesus institui a Eucaristia como prova de seu imenso amor por nós e pede aos que vamos participar dela, que nos amemos como Ele nos amou. E, neste sentido, a Eucaristia deve estar necessariamente antecedida pelo Sacramento da Reconciliação, pois o receber o “alimento de vida eterna” exige uma reconciliação constante com os irmãos e com Deus Pai.

O mistério eucarístico, desgarrado de sua própria natureza sacrificial e sacramental, deixa simplesmente de ser tal. Não admite nenhuma imitação “profana”, que se converteria muito facilmente (se não até mesmo como norma) em uma profanação. Isto deve ser sempre lembrado, e principalmente em nosso tempo em que observamos uma tendência a apagar a distinção entre “sacrum” e “profanum”, dada a difundida tendência geral (ao menos em alguns lugares) à dessacralização de tudo.

Em tal realidade a Igreja tem o dever particular de assegurar e corroborar o “sacrum” da Eucaristia. Em nossa sociedade pluralista, e às vezes também deliberadamente secularizada, a fé viva da comunidade cristã -fé consciente inclusive dos próprios direitos a respeito de todos aqueles que não compartilham a mesma fé- garante a este “sacrum” o direito de cidadania. O dever de respeitar a fé de cada um é ao mesmo tempo co-relativa ao direito natural e civil da liberdade de consciência e de religião.


Os sacerdotes, agindo in persona Christi, devem, portanto, principalmente em nossos dias, ser iluminados pela plenitude desta fé viva, e à luz dela, devem compreender e cumprir tudo o que faz parte de seu ministério, por vontade de Cristo e de sua Igreja.

Fonte:


terça-feira, 3 de maio de 2016

Servo de YHWH

Servo de YHWH.

Falar de profetismo é fazer memória dos vários profetas do mundo bíblico que marcaram a história do povo de Israel. É falar de pessoas que tiveram a coragem e a ousadia de ouvir o chamado de Deus e ser porta-vozes de Deus no anúncio de sua profecia. Pessoas que denunciaram as injustiças, as iniquidades, as violências e anunciaram um novo tempo de esperança, de justiça, de paz, e se tornaram “luz das nações” (Is 49,6).

A partir de recordações baseadas em alguns teóricos e de forma concisa é que faremos a construção do termo profeta-servo no exílio da Babilônia, falaremos da experiência do profeta-servo, dos caminhos do anúncio do profeta-servo e, finalmente, daremos nossas considerações finais. Nosso objetivo, com esta reflexão, é apresentar o profeta-servo do exílio da Babilônia a partir do segundo canto do Servo de YHWH.

O termo profeta-servo no período do exílio
No período de exílio (séc. VI a.C.) a pregação do profeta do Dêutero-Isaías se concretizava com a esperança do povo de Israel. A esperança na mão poderosa de Deus prometia um novo céu e uma nova terra. O profeta anunciava a esperança e convidava o povo de Israel a participar da Aliança de Deus através da conversão. Nesse anúncio o enfoque central foi a trajetória dos quatro cantos do Servo de YHWH, vocação (42,1-4), missão (49,1-6), resistência (50,4-9) e martírio (52,13-53,12), apresentando, assim, a caminhada e missão do Servo no meio do povo sofrido.

Nesse contexto de sofrimento o profeta precisava possuir algumas características, dentre elas a vocação. O profeta era alguém escolhido, chamado, um vocacionado de Deus. A ação do profeta na Bíblia sempre foi marcada pela iniciativa de Deus. Nenhum profeta verdadeiro se autoproclamava. Ele ouvia o chamado de Deus e respondia livremente, deixando-se guiar. Muitas vezes esse chamado causou uma certa insegurança e resistência, como aconteceu com Jeremias, que teve medo de responder ao chamado de Deus, mas depois que fez a experiência de Deus não teve coragem de ficar calado e respondeu ao chamado colocando-se inteiramente à disposição desse Deus.

Tendo em vista que o profeta é um vocacionado e chamado por Deus para realizar determinada missão, podemos afirmar que o Servo é um profeta (cf. Jr 1,5; Is 49,1-5), pois possui as mesmas características do profeta-servo que aparece no exílio. É no exílio da Babilônia que nasce o profeta-servo, o chamado por Deus. No princípio o profeta não compreendeu qual era sua missão, pensava que sua missão era apenas com os exilados. Mas como anunciar a libertação e uma nova Aliança só para o povo de Israel se havia outros oprimidos junto com o povo de Israel? Então ele compreendeu que sua missão ia mais além do povo de Israel, sua missão era ser “luz das nações” (Is 49,6). De acordo com a compreensão hebraica, o termo Servo (‘ebed) que aparece no segundo canto do Servo de YHWH representa a nação de Israel ou alguém que tem uma missão a ser realizada junto ao povo de Israel (Is 49,1-6). “Deve-se identificar esse servo com o Israel-Servo, mas também deve-se fazer distinção entre um e outro, pois o servo tem uma missão junto a eles (conforme é explicitamente declarado em 49.5-6. Cf. 49,3).”

Foi no segundo canto do Servo de YHWH, narrado pelo Dêutero-Isaías, que o profeta-servo percebeu claramente sua missão profética, a missão de unir o povo em torno de Deus. Sua missão era restabelecer a Aliança de Deus com o povo, como fizeram Moisés e Josué no começo da história, um povo organizado sem opressores e oprimidos (Is 49,5-6).

É interessante perceber que Deus usou o profeta-servo do exílio narrado por Isaías para revelar seu amor libertador. Deus, por meio do profeta-servo, conduziu e libertou seu povo das mãos dos opressores. Foi no meio do povo sofrido que o profeta fez a experiência de um Deus presente nos acontecimentos diários desse povo e a ele se rendeu (Is 52,6; 58,9; 65,1). Foi no meio popular que o profetismo encontrou a fonte da sua riqueza e muitas vezes de sua decadência, pois muita gente aproveitou das oportunidades e, sem ter nenhum oráculo de Javé, gritava “Oráculo de Javé!” (Jr 28, 4; 8).

Afirmamos também que o servo-profeta viveu no meio do povo sofrido, experienciou Deus por meio da dor e do sofrimento daquele povo do exílio e teve a coragem de anunciar a esperança de libertação. “Eu, YHWH, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te pus como aliança do povo, como luz das nações, a fim de abrir os olhos dos cegos, a fim de soltar do cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas.” (Is 42,6-7)

É a partir das afirmações acima que defendemos a teoria do Servo narrada na perícope de Is 49,1-6 como sendo um profeta, tendo em vista que ambos possuem as mesmas características e que este escolhido e chamado por Deus é muito mais que um Servo, é um profeta. Isto porque o Servo é aquele que Deus chamou e enviou para ser luz de nações: “Mas disse: ‘É pouco que sejas para mim servo para levantar as tribos de Jacó e os sobreviventes de Israel para fazer voltar. E te dou para luz de nações, para ser minha salvação até a extremidade da terra’” (Is 49,6).
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A experiência do profeta
A experiência que o profeta fazia de Deus era sempre relacionada com o Deus de seus pais, que trazia consigo a lembrança de tudo o que Deus fez no passado e oferecia olhos para entender e atualizar o seu sentido. O profeta, nesse contexto, tornou-se a memória do povo. Uma memória que lhe recordava as coisas que incomodavam e que ele (o povo sofrido, oprimido, escravizado, o povo escolhido do Deus de Israel) gostaria de nunca lembrar, como, por exemplo, o êxodo (Ex 22,20).

Faziam memória também da presença carinhosa do Deus libertador que conduziu o povo para uma nova terra, um Deus que fez Aliança com seu povo (Dt 32,10-11). Essas memórias que o profeta trazia com ele eram as que ajudavam o povo a identificar se de fato era um verdadeiro profeta ou um falso profeta. Esse profeta, por meio da experiência de Deus, tornou-se o defensor da Aliança, era alguém que cobrava do povo um compromisso, uma postura de fidelidade à Aliança. Ele encarnava as exigências da Aliança ou da Santidade de Deus, exigia fidelidade e pedia a observância prática da Lei de Deus.
A experiência feita pelo profeta era norteada pela Santidade de Deus, pois experienciava aquilo que o povo deveria ser e não era. Por meio dessa experiência, o profeta percebia quando o povo agia contra a Aliança e exigia do povo uma mudança de vida. Foi a partir dessa experiência do Deus do povo e do Povo de Deus que nasceu no profeta a consciência de sua missão. Nesse momento ele começou a gritar e a anunciar a profecia de Deus. Ao denunciar as injustiças, o profeta estava anunciando o amor de Deus e o apelo à conversão.
O povo, no convívio com o profeta que nascia no meio deles e fazia a experiência de Deus a partir de sua realidade de sofrimento, identificava-se com esse profeta, pois reconhecia nele o ideal que carregava dentro de si. Era o povo que, por meio da fé, reconhecia o verdadeiro profeta. Profetas eram pessoas que viviam uma grande experiência de Deus e não se apoderavam dessa experiência para o bem próprio, mas faziam dela uma doação de sua vida à vontade de Deus. Os profetas, ao anunciarem a profecia de Deus, faziam-no a partir da experiência que tinham de Deus no convívio com o sofrimento e as injustiças vividas pelo povo.

O profeta-servo no período do exílo (séc. VI a.C.) da Babilônia também fez a experiência de Deus no meio do povo sofrido, pois tornou-se sofredor com os sofredores. O profeta-servo foi chamado do meio do povo para anunciar a libertação e a esperança que Deus reservou àquele povo escravizado em terra estrangeira. “Mas agora disse YHWH, que me modelou do seio para servo para ele, para fazer voltar Jacó a ele, e Israel para ele se reúna; e serei glorificado aos olhos de YHWH, e meu Deus será meu vigor!” (Is 49,5)

Foi através da convivência com os escravos e as escravas na Babilônia que o profeta-servo experienciou a dor e humilhação que o Povo de Deus estava vivendo. Com essa experiência de injustiça e dor o Povo de Deus fez a experiência do Deus pai-mãe ao seu lado, pois viram no profeta-servo a presença do Deus libertador.
Por meio da experiência de dor e também do carinho paterno-materno de Deus na pessoa do profeta-servo, o povo sofrido acreditou no anúncio do profeta de restaurar a Aliança de Deus com seu povo. Acreditou também que a unção do Espírito Santo não era exclusividade do rei, mas pertencia ao povo e sempre vinha acompanhada da promessa de vida: “E assim diz Deus, YHWH, que criou os céus e os estendeu, e fez a imensidão da terra e tudo o que dela brota, que deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela” (Is 42,5).

Nesse sentido o profeta-servo, ao fazer a experiência do Deus libertador no meio do povo sofrido e anunciar a libertação, despertava no Povo de Deus a experiência carinhosa de um Deus que declara seu amor e chama seu povo pelo nome. Afirmamos, então, que o profeta-servo da comunidade do Dêutero-Isaías era usado por Deus para refazer a Aliança que outrora concretizou com os pobres, oprimidos e escravizados pelo rei Nabucodonosor no exílio da Babilônia. Foi com esse povo e com esse profeta-servo que Deus contou para dar cumprimento à sua vontade na realização do projeto de salvação.

O profeta, portanto, era aquele que anunciava um deus e a sua vontade. Por isso, em virtude do encargo divino, ele exigia a obediência como dever ético. O profeta pode também ser um homem ou uma mulher que, com seu exemplo, mostra o caminho para a salvação religiosa. Nesse sentido, a missão do profeta estava vinculada à gratuidade e não era exercida como uma profissão. Era simplesmente o colocar-se a serviço de Deus para a realização de sua missão que se concretizava no anúncio da profecia.

Os caminhos do anúncio do profeta
O anúncio do profeta perpassava os três caminhos, que se encontram interligados: da justiça, da solidariedade e da mística.

Justiça
O caminho da justiça acontecia quando tudo respondia à vontade de Deus. Nesse caso o profeta tinha como missão manter o povo organizado conforme a Aliança proposta por YHWH. Esse profeta não aparecia falando do nada nem era um pregador de teorias, mas denunciava bem claramente as injustiças e ainda ousava apresentar as causas das injustiças. É verdadeiramente fiel à mensagem de Deus.

Ao denunciar as injustiças, criava normas que favoreciam a vida do povo e melhor observância da Aliança. Uma das leis criadas pelos profetas foi a do Ano Jubilar ou Sabático (Lv 25; Dt 15), que tinha como objetivo criar uma estrutura agrária justa. A luta pela justiça sempre levava o profeta ao confronto com o rei, porque o profeta cobrava deste a observância da Aliança, que devia ser cumprida dentro do território confiado ao rei, como realização do projeto de Deus.

O profeta do exílio tinha como missão anunciar a prática da justiça. A justiça para a comunidade do Dêutero-Isaías relatada no segundo canto do Servo de YHWH, do Servo Sofredor, envolvia a organização do povo sofrido, uma justiça que deveria ser vivida pelos líderes do povo e expressa na realização de um projeto que propusesse uma nova sociedade, uma sociedade na qual a justiça, os direitos e a igualdade fossem a prioridade da missão desse profeta.

É a partir desta concepção de missão profética, que o profeta-servo do exílio tentou reunir o povo disperso com o sofrimento vivido no exílio. Ele levou a comunidade a perceber que a catástrofe que os levara àquela situação não podia ser resolvida sem que eles se organizassem na prática da justiça. Esse profeta foi mais além, apontou os erros cometidos pelos reis que os esfolaram, violentaram. Ele conseguiu reunir o povo sendo luz para aquela nação (Is 49, 1-6).

Solidariedade
Tendo o profeta a missão de anunciar a justiça e apontar caminhos para que ela acontecesse, concretizou a justiça por meio da solidariedade e da partilha com os membros da comunidade que estavam mais próximos. Essa prática da solidariedade surgiu no meio da comunidade que foi organizada pelo profeta com base na prática da justiça. O surgimento dessa solidariedade nasceu com o compromisso de vida entre irmãos e irmãs. Em tal contexto, mais uma vez Deus mostrou para o povo sofrido que o seu compromisso foi com eles e não com os príncipes e reis dos palácios.

A experiência que o profeta do exílio fez da vivência da ternura de Deus junto com os oprimidos, pobres, escravizados despertou na comunidade a prática à compreensão da solidariedade. O profeta mostrou com seu testemunho que a comunidade era capaz de viver unida e um podia ajudar o outro com a partilha de seus dons. E o profeta mais uma vez compreendeu na realidade dessa comunidade qual era sua missão naquele exílio. O profeta tinha nessa época a missão de apontar caminhos para a realização da solidariedade no meio do povo. O povo aprendia com o testemunho do profeta o ser solidário, o partilhar o dom da vida, as alegrias e os sofrimentos. Com o anúncio do profeta aprendia que a comunidade do Povo de Deus deveria ser uma amostra do que Deus queria para todos. A comunidade deveria ser a Aliança de Deus com homens e mulheres no acolhimento do pobre, do marginalizado, na luta pela justiça. O anúncio do profeta deveria ser permeado pela prática da solidariedade.

Mística
A ação do profeta não se limitava apenas a denunciar as injustiças e os erros nem só estimulava o povo para a solidariedade, mas também, e sobretudo, anunciava o cerne da fé: O Deus que estava no meio do povo! O Deus que ouvia o grito do povo e que o escutava! Desse modo o profeta contribuiu para que aparecesse no meio do povo uma nova consciência, que já não dependia dos dominadores, mas que nascia diretamente da fonte da vida: do amor de Deus. O profeta do exílio foi aquele que rezava com a comunidade, uma oração encarnada que buscava a libertação e o sentido de ser comunidade, de partilhar e de festejar. Esse era, de fato, o verdadeiro profeta, um chamado por Deus do meio do povo para experienciar seu amor através do sofrimento do povo. Para anunciar a justiça e a solidariedade, o profeta foi perseguido, maltratado, humilhado e até torturado por seus inimigos. Esse profeta-servo suportou todas as perseguições, humilhações, encontrando forças no Deus libertador e ao mesmo tempo anunciando a construção do reino de liberdade, de fraternidade, igualdade, paz e comunhão. Nesse contexto a justiça e a solidariedade eram resultados de uma prática mística de fé encarnada, que precisava estar intimamente ligada com a missão do profeta.
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Considerações finais

Em suma, o profetismo,desde sua origem,esteve permeado por evoluções, as quais marcaram sua história e a história do Povo de Deus, uma vez que foi no meio do povo sofrido que nasceu o profeta, aquele vocacionado de Deus para anunciar-lhe a mensagem, alguém que fez a experiência desse mesmo Deus a partir da realidade de sofrimento, injustiça e opressão vivida pelo povo de Israel. Concluímos que o profeta-servo e sua missão profética no exílio da Babilônia tinha como missão o anúncio da esperança, da libertação, e a prática da justiça, da solidariedade, imbuindo de uma espiritualidade encarnada. Esse profeta-servo do exílio falava do passado com os pés no presente almejando alcançar voos para um futuro próximo.

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