Servo
de YHWH.
Falar
de profetismo é fazer memória dos vários profetas do mundo bíblico que marcaram
a história do povo de Israel. É falar de pessoas que tiveram a coragem e a
ousadia de ouvir o chamado de Deus e ser porta-vozes de Deus no anúncio de sua
profecia. Pessoas que denunciaram as injustiças, as iniquidades, as violências e
anunciaram um novo tempo de esperança, de justiça, de paz, e se tornaram “luz das
nações” (Is 49,6).
A
partir de recordações baseadas em alguns teóricos e de forma concisa é que faremos
a construção do termo profeta-servo no exílio da Babilônia, falaremos da experiência
do profeta-servo, dos caminhos do anúncio do profeta-servo e, finalmente, daremos
nossas considerações finais. Nosso objetivo, com esta reflexão, é apresentar o
profeta-servo do exílio da Babilônia a partir do segundo canto do Servo de
YHWH.
O
termo profeta-servo no período do exílio
No
período de exílio (séc. VI a.C.) a pregação do profeta do Dêutero-Isaías se concretizava
com a esperança do povo de Israel. A esperança na mão poderosa de Deus prometia
um novo céu e uma nova terra. O profeta anunciava a esperança e convidava o
povo de Israel a participar da Aliança de Deus através da conversão. Nesse
anúncio o enfoque central foi a trajetória dos quatro cantos do Servo de YHWH,
vocação (42,1-4), missão (49,1-6), resistência (50,4-9) e martírio (52,13-53,12),
apresentando, assim, a caminhada e missão do Servo no meio do povo sofrido.
Nesse
contexto de sofrimento o profeta precisava possuir algumas características, dentre
elas a vocação. O profeta era alguém escolhido, chamado, um vocacionado de
Deus. A ação do profeta na Bíblia sempre foi marcada pela iniciativa de Deus. Nenhum
profeta verdadeiro se autoproclamava. Ele ouvia o chamado de Deus e respondia
livremente, deixando-se guiar. Muitas vezes esse chamado causou uma certa
insegurança e resistência, como aconteceu com Jeremias, que teve medo de responder
ao chamado de Deus, mas depois que fez a experiência de Deus não teve coragem
de ficar calado e respondeu ao chamado colocando-se inteiramente à disposição
desse Deus.
Tendo
em vista que o profeta é um vocacionado e chamado por Deus para realizar determinada
missão, podemos afirmar que o Servo é um profeta (cf. Jr 1,5; Is 49,1-5), pois
possui as mesmas características do profeta-servo que aparece no exílio. É no
exílio da Babilônia que nasce o profeta-servo, o chamado por Deus. No princípio
o profeta não compreendeu qual era sua missão, pensava que sua missão era
apenas com os exilados. Mas como anunciar a libertação e uma nova Aliança só
para o povo de Israel se havia outros oprimidos junto com o povo de Israel?
Então ele compreendeu que sua missão ia mais além do povo de Israel, sua missão
era ser “luz das nações” (Is 49,6). De acordo com a compreensão hebraica, o
termo Servo (‘ebed) que aparece no segundo canto do Servo de YHWH representa a
nação de Israel ou alguém que tem uma missão a ser realizada junto ao povo de
Israel (Is 49,1-6). “Deve-se identificar esse servo com o Israel-Servo, mas
também deve-se fazer distinção entre um e outro, pois o servo tem uma missão
junto a eles (conforme é explicitamente declarado em 49.5-6. Cf. 49,3).”
Foi
no segundo canto do Servo de YHWH, narrado pelo Dêutero-Isaías, que o profeta-servo
percebeu claramente sua missão profética, a missão de unir o povo em torno de
Deus. Sua missão era restabelecer a Aliança de Deus com o povo, como fizeram
Moisés e Josué no começo da história, um povo organizado sem opressores e
oprimidos (Is 49,5-6).
É
interessante perceber que Deus usou o profeta-servo do exílio narrado por
Isaías para revelar seu amor libertador. Deus, por meio do profeta-servo,
conduziu e libertou seu povo das mãos dos opressores. Foi no meio do povo
sofrido que o profeta fez a experiência de um Deus presente nos acontecimentos
diários desse povo e a ele se rendeu (Is 52,6; 58,9; 65,1). Foi no meio popular
que o profetismo encontrou a fonte da sua riqueza e muitas vezes de sua
decadência, pois muita gente aproveitou das oportunidades e, sem ter nenhum oráculo
de Javé, gritava “Oráculo de Javé!” (Jr 28, 4; 8).
Afirmamos
também que o servo-profeta viveu no meio do povo sofrido, experienciou Deus por
meio da dor e do sofrimento daquele povo do exílio e teve a coragem de anunciar
a esperança de libertação. “Eu, YHWH, te chamei para o serviço da justiça,
tomei-te pela mão e te modelei, eu te pus como aliança do povo, como luz das
nações, a fim de abrir os olhos dos cegos, a fim de soltar do cárcere os
presos, e da prisão os que habitam nas trevas.” (Is 42,6-7)
É a
partir das afirmações acima que defendemos a teoria do Servo narrada na
perícope de Is 49,1-6 como sendo um profeta, tendo em vista que ambos possuem
as mesmas características e que este escolhido e chamado por Deus é muito mais
que um Servo, é um profeta. Isto porque o Servo é aquele que Deus chamou e
enviou para ser luz de nações: “Mas disse: ‘É pouco que sejas para mim servo
para levantar as tribos de Jacó e os sobreviventes de Israel para fazer voltar.
E te dou para luz de nações, para ser minha salvação até a extremidade da
terra’” (Is 49,6).
59
A
experiência do profeta
A
experiência que o profeta fazia de Deus era sempre relacionada com o Deus de
seus pais, que trazia consigo a lembrança de tudo o que Deus fez no passado e oferecia
olhos para entender e atualizar o seu sentido. O profeta, nesse contexto, tornou-se
a memória do povo. Uma memória que lhe recordava as coisas que incomodavam e
que ele (o povo sofrido, oprimido, escravizado, o povo escolhido do Deus de
Israel) gostaria de nunca lembrar, como, por exemplo, o êxodo (Ex 22,20).
Faziam
memória também da presença carinhosa do Deus libertador que conduziu o povo
para uma nova terra, um Deus que fez Aliança com seu povo (Dt 32,10-11). Essas
memórias que o profeta trazia com ele eram as que ajudavam o povo a identificar
se de fato era um verdadeiro profeta ou um falso profeta. Esse profeta, por
meio da experiência de Deus, tornou-se o defensor da Aliança, era alguém que
cobrava do povo um compromisso, uma postura de fidelidade à Aliança. Ele
encarnava as exigências da Aliança ou da Santidade de Deus, exigia fidelidade e
pedia a observância prática da Lei de Deus.
A
experiência feita pelo profeta era norteada pela Santidade de Deus, pois
experienciava aquilo que o povo deveria ser e não era. Por meio dessa
experiência, o profeta percebia quando o povo agia contra a Aliança e exigia do
povo uma mudança de vida. Foi a partir dessa experiência do Deus do povo e do
Povo de Deus que nasceu no profeta a consciência de sua missão. Nesse momento
ele começou a gritar e a anunciar a profecia de Deus. Ao denunciar as
injustiças, o profeta estava anunciando o amor de Deus e o apelo à conversão.
O
povo, no convívio com o profeta que nascia no meio deles e fazia a experiência de
Deus a partir de sua realidade de sofrimento, identificava-se com esse profeta,
pois reconhecia nele o ideal que carregava dentro de si. Era o povo que, por
meio da fé, reconhecia o verdadeiro profeta. Profetas eram pessoas que viviam
uma grande experiência de Deus e não se apoderavam dessa experiência para o bem
próprio, mas faziam dela uma doação de sua vida à vontade de Deus. Os profetas,
ao anunciarem a profecia de Deus, faziam-no a partir da experiência que tinham
de Deus no convívio com o sofrimento e as injustiças vividas pelo povo.
O
profeta-servo no período do exílo (séc. VI a.C.) da Babilônia também fez a experiência
de Deus no meio do povo sofrido, pois tornou-se sofredor com os sofredores. O
profeta-servo foi chamado do meio do povo para anunciar a libertação e a
esperança que Deus reservou àquele povo escravizado em terra estrangeira. “Mas
agora disse YHWH, que me modelou do seio para servo para ele, para fazer voltar
Jacó a ele, e Israel para ele se reúna; e serei glorificado aos olhos de YHWH,
e meu Deus será meu vigor!” (Is 49,5)
Foi
através da convivência com os escravos e as escravas na Babilônia que o profeta-servo
experienciou a dor e humilhação que o Povo de Deus estava vivendo. Com essa
experiência de injustiça e dor o Povo de Deus fez a experiência do Deus pai-mãe
ao seu lado, pois viram no profeta-servo a presença do Deus libertador.
Por
meio da experiência de dor e também do carinho paterno-materno de Deus na
pessoa do profeta-servo, o povo sofrido acreditou no anúncio do profeta de
restaurar a Aliança de Deus com seu povo. Acreditou também que a unção do
Espírito Santo não era exclusividade do rei, mas pertencia ao povo e sempre
vinha acompanhada da promessa de vida: “E assim diz Deus, YHWH, que criou os
céus e os estendeu, e fez a imensidão da terra e tudo o que dela brota, que deu
o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela” (Is
42,5).
Nesse
sentido o profeta-servo, ao fazer a experiência do Deus libertador no meio do
povo sofrido e anunciar a libertação, despertava no Povo de Deus a experiência carinhosa
de um Deus que declara seu amor e chama seu povo pelo nome. Afirmamos, então,
que o profeta-servo da comunidade do Dêutero-Isaías era usado por Deus para
refazer a Aliança que outrora concretizou com os pobres, oprimidos e
escravizados pelo rei Nabucodonosor no exílio da Babilônia. Foi com esse povo e
com esse profeta-servo que Deus contou para dar cumprimento à sua vontade na
realização do projeto de salvação.
O
profeta, portanto, era aquele que anunciava um deus e a sua vontade. Por isso, em
virtude do encargo divino, ele exigia a obediência como dever ético. O profeta pode
também ser um homem ou uma mulher que, com seu exemplo, mostra o caminho para a
salvação religiosa. Nesse sentido, a missão do profeta estava vinculada à
gratuidade e não era exercida como uma profissão. Era simplesmente o colocar-se
a serviço de Deus para a realização de sua missão que se concretizava no
anúncio da profecia.
Os
caminhos do anúncio do profeta
O
anúncio do profeta perpassava os três caminhos, que se encontram interligados:
da justiça, da solidariedade e da mística.
Justiça
O
caminho da justiça acontecia quando tudo respondia à vontade de Deus. Nesse
caso o profeta tinha como missão manter o povo organizado conforme a Aliança
proposta por YHWH. Esse profeta não aparecia falando do nada nem era um
pregador de teorias, mas denunciava bem claramente as injustiças e ainda ousava
apresentar as causas das injustiças. É verdadeiramente fiel à mensagem de Deus.
Ao
denunciar as injustiças, criava normas que favoreciam a vida do povo e melhor observância
da Aliança. Uma das leis criadas pelos profetas foi a do Ano Jubilar ou
Sabático (Lv 25; Dt 15), que tinha como objetivo criar uma estrutura agrária justa.
A luta pela justiça sempre levava o profeta ao confronto com o rei, porque o profeta
cobrava deste a observância da Aliança, que devia ser cumprida dentro do território
confiado ao rei, como realização do projeto de Deus.
O
profeta do exílio tinha como missão anunciar a prática da justiça. A justiça para
a comunidade do Dêutero-Isaías relatada no segundo canto do Servo de YHWH, do
Servo Sofredor, envolvia a organização do povo sofrido, uma justiça que deveria
ser vivida pelos líderes do povo e expressa na realização de um projeto que
propusesse uma nova sociedade, uma sociedade na qual a justiça, os direitos e a
igualdade fossem a prioridade da missão desse profeta.
É a
partir desta concepção de missão profética, que o profeta-servo do exílio tentou
reunir o povo disperso com o sofrimento vivido no exílio. Ele levou a
comunidade a perceber que a catástrofe que os levara àquela situação não podia
ser resolvida sem que eles se organizassem na prática da justiça. Esse profeta
foi mais além, apontou os erros cometidos pelos reis que os esfolaram,
violentaram. Ele conseguiu reunir o povo sendo luz para aquela nação (Is 49,
1-6).
Solidariedade
Tendo
o profeta a missão de anunciar a justiça e apontar caminhos para que ela acontecesse,
concretizou a justiça por meio da solidariedade e da partilha com os membros da
comunidade que estavam mais próximos. Essa prática da solidariedade surgiu no
meio da comunidade que foi organizada pelo profeta com base na prática da
justiça. O surgimento dessa solidariedade nasceu com o compromisso de vida
entre irmãos e irmãs. Em tal contexto, mais uma vez Deus mostrou para o povo
sofrido que o seu compromisso foi com eles e não com os príncipes e reis dos palácios.
A
experiência que o profeta do exílio fez da vivência da ternura de Deus junto com
os oprimidos, pobres, escravizados despertou na comunidade a prática à
compreensão da solidariedade. O profeta mostrou com seu testemunho que a
comunidade era capaz de viver unida e um podia ajudar o outro com a partilha de
seus dons. E o profeta mais uma vez compreendeu na realidade dessa comunidade
qual era sua missão naquele exílio. O profeta tinha nessa época a missão de
apontar caminhos para a realização da solidariedade no meio do povo. O povo
aprendia com o testemunho do profeta o ser solidário, o partilhar o dom da
vida, as alegrias e os sofrimentos. Com o anúncio do profeta aprendia que a
comunidade do Povo de Deus deveria ser uma amostra do que Deus queria para
todos. A comunidade deveria ser a Aliança de Deus com homens e mulheres no
acolhimento do pobre, do marginalizado, na luta pela justiça. O anúncio do
profeta deveria ser permeado pela prática da solidariedade.
Mística
A
ação do profeta não se limitava apenas a denunciar as injustiças e os erros nem
só estimulava o povo para a solidariedade, mas também, e sobretudo, anunciava o
cerne da fé: O Deus que estava no meio do povo! O Deus que ouvia o grito do povo
e que o escutava! Desse modo o profeta contribuiu para que aparecesse no meio
do povo uma nova consciência, que já não dependia dos dominadores, mas que
nascia diretamente da fonte da vida: do amor de Deus. O profeta do exílio foi
aquele que rezava com a comunidade, uma oração encarnada que buscava a
libertação e o sentido de ser comunidade, de partilhar e de festejar. Esse era,
de fato, o verdadeiro profeta, um chamado por Deus do meio do povo para
experienciar seu amor através do sofrimento do povo. Para anunciar a justiça e
a solidariedade, o profeta foi perseguido, maltratado, humilhado e até
torturado por seus inimigos. Esse profeta-servo suportou todas as perseguições,
humilhações, encontrando forças no Deus libertador e ao mesmo tempo anunciando
a construção do reino de liberdade, de fraternidade, igualdade, paz e comunhão.
Nesse contexto a justiça e a solidariedade eram resultados de uma prática
mística de fé encarnada, que precisava estar intimamente ligada com a missão do
profeta.
62
Considerações
finais
Em
suma, o profetismo,desde sua origem,esteve permeado por evoluções, as quais
marcaram sua história e a história do Povo de Deus, uma vez que foi no meio do
povo sofrido que nasceu o profeta, aquele vocacionado de Deus para anunciar-lhe
a mensagem, alguém que fez a experiência desse mesmo Deus a partir da realidade
de sofrimento, injustiça e opressão vivida pelo povo de Israel. Concluímos que
o profeta-servo e sua missão profética no exílio da Babilônia tinha como missão
o anúncio da esperança, da libertação, e a prática da justiça, da
solidariedade, imbuindo de uma espiritualidade encarnada. Esse profeta-servo do
exílio falava do passado com os pés no presente almejando alcançar voos para um
futuro próximo.
Fonte: