quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A XXIX JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE - Felizes os pobres em espírito…

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
 PARA A XXIX JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
(Domingo de Ramos, 13 de Abril de 2014)
«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3) 

 Felizes os pobres em espírito…

A primeira Bem-aventurança, tema da próxima Jornada Mundial da Juventude, declara felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Num tempo em que muitas pessoas penam por causa da crise económica, pode parecer inoportuno acostar pobreza e felicidade. Em que sentido podemos conceber a pobreza como uma bênção?

Em primeiro lugar, procuremos compreender o que significa «pobres em espírito». Quando o Filho de Deus Se fez homem, escolheu um caminho de pobreza, de despojamento. Como diz São Paulo, na Carta aos Filipenses: «Tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens» (2, 5-7). Jesus é Deus que Se despoja da sua glória. Vemos aqui a escolha da pobreza feita por Deus: sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9). É o mistério que contemplamos no presépio, vendo o Filho de Deus numa manjedoura; e mais tarde na cruz, onde o despojamento chega ao seu ápice. 

O adjectivo grego ptochós (pobre) não tem um significado apenas material, mas quer dizer «mendigo». Há que o ligar com o conceito hebraico de anawim (os «pobres de Iahweh»), que evoca humildade, consciência dos próprios limites, da própria condição existencial de pobreza. Os anawim confiam no Senhor, sabem que dependem d’Ele. 

Como justamente soube ver Santa Teresa do Menino Jesus, Cristo na sua Encarnação apresenta-Se como um mendigo, um necessitado em busca de amor. O Catecismo da Igreja Católica fala do homem como dum «mendigo de Deus» (n. 2559) e diz-nos que a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa (n. 2560).

São Francisco de Assis compreendeu muito bem o segredo da Bem-aventurança dos pobres em espírito. De facto, quando Jesus lhe falou na pessoa do leproso e no Crucifixo, ele reconheceu a grandeza de Deus e a própria condição de humildade. Na sua oração, o Poverello passava horas e horas a perguntar ao Senhor: «Quem és Tu? Quem sou eu?» Despojou-se duma vida abastada e leviana, para desposar a «Senhora Pobreza», a fim de imitar Jesus e seguir o Evangelho à letra. Francisco viveu a imitação de Cristo pobre e o amor pelos pobres de modo indivisível, como as duas faces duma mesma moeda.

Posto isto, poder-me-íeis perguntar: Mas, em concreto, como é possível fazer com que esta pobreza em espírito se transforme em estilo de vida, incida concretamente na nossa existência? Respondo-vos em três pontos.

Antes de mais nada, procurai ser livres em relação às coisas. O Senhor chama-nos a um estilo de vida evangélico caracterizado pela sobriedade, chama-nos a não ceder à cultura do consumo. Trata-se de buscar a essencialidade, aprender a despojarmo-nos de tantas coisas supérfluas e inúteis que nos sufocam. Desprendamo-nos da ambição de possuir, do dinheiro idolatrado e depois esbanjado. No primeiro lugar, coloquemos Jesus. Ele pode libertar-nos das idolatrias que nos tornam escravos. Confiai em Deus, queridos jovens! Ele conhece-nos, ama-nos e nunca se esquece de nós. Como provê aos lírios do campo (cf. Mt 6, 28), também não deixará que nos falte nada! Mesmo para superar a crise económica, é preciso estar prontos a mudar o estilo de vida, a evitar tantos desperdícios. Como é necessária a coragem da felicidade, também é precisa a coragem da sobriedade.

Em segundo lugar, para viver esta Bem-aventurança todos necessitamos de conversão em relação aos pobres. Devemos cuidar deles, ser sensíveis às suas carências espirituais e materiais. A vós, jovens, confio de modo particular a tarefa de colocar a solidariedade no centro da cultura humana. Perante antigas e novas formas de pobreza – o desemprego, a emigração, muitas dependências dos mais variados tipos –, temos o dever de permanecer vigilantes e conscientes, vencendo a tentação da indiferença. Pensemos também naqueles que não se sentem amados, não olham com esperança o futuro, renunciam a comprometer-se na vida porque se sentem desanimados, desiludidos, temerosos. Devemos aprender a estar com os pobres. Não nos limitemos a pronunciar belas palavras sobre os pobres! Mas encontremo-los, fixemo-los olhos nos olhos, ouçamo-los. Para nós, os pobres são uma oportunidade concreta de encontrar o próprio Cristo, de tocar a sua carne sofredora. 

Mas – e chegamos ao terceiro ponto – os pobres não são pessoas a quem podemos apenas dar qualquer coisa. Eles têm tanto para nos oferecer, para nos ensinar. Muito temos nós a aprender da sabedoria dos pobres! Pensai que um Santo do século XVIII, Bento José Labre – dormia pelas ruas de Roma e vivia das esmolas da gente –, tornara-se conselheiro espiritual de muitas pessoas, incluindo nobres e prelados. De certo modo, os pobres são uma espécie de mestres para nós. Ensinam-nos que uma pessoa não vale por aquilo que possui, pelo montante que tem na conta bancária. Um pobre, uma pessoa sem bens materiais, conserva sempre a sua dignidade. Os pobres podem ensinar-nos muito também sobre a humildade e a confiança em Deus. Na parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14), Jesus propõe este último como modelo, porque é humilde e se reconhece pecador. E a própria viúva, que lança duas moedinhas no tesouro do templo, é exemplo da generosidade de quem, mesmo tendo pouco ou nada, dá tudo (Lc 21, 1-4).

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A XXIX JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
 PARA A XXIX JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3)  

A força revolucionária das Bem-aventuranças
É-nos sempre muito útil ler e meditar as Bem-aventuranças! Jesus proclamou-as no seu primeiro grande sermão, feito na margem do lago da Galileia. Havia uma multidão imensa e Ele, para ensinar os seus discípulos, subiu a um monte; por isso é chamado o «sermão da montanha». Na Bíblia, o monte é visto como lugar onde Deus Se revela; pregando sobre o monte, Jesus apresenta-Se como mestre divino, como novo Moisés. E que prega Ele? Jesus prega o caminho da vida; aquele caminho que Ele mesmo percorre, ou melhor, que é Ele mesmo, e propõe-no como caminho da verdadeira felicidade. Em toda a sua vida, desde o nascimento na gruta de Belém até à morte na cruz e à ressurreição, Jesus encarnou as Bem-aventuranças. Todas as promessas do Reino de Deus se cumpriram n’Ele. 

Ao proclamar as Bem-aventuranças, Jesus convida-nos a segui-Lo, a percorrer com Ele o caminho do amor, o único que conduz à vida eterna. Não é uma estrada fácil, mas o Senhor assegura-nos a sua graça e nunca nos deixa sozinhos. Na nossa vida, há pobreza, aflições, humilhações, luta pela justiça, esforço da conversão quotidiana, combates para viver a vocação à santidade, perseguições e muitos outros desafios. Mas, se abrirmos a porta a Jesus, se deixarmos que Ele esteja dentro da nossa história, se partilharmos com Ele as alegrias e os sofrimentos, experimentaremos uma paz e uma alegria que só Deus, amor infinito, pode dar. 

As Bem-aventuranças de Jesus são portadoras duma novidade revolucionária, dum modelo de felicidade oposto àquele que habitualmente é transmitido pelos mass media, pelo pensamento dominante. Para a mentalidade do mundo, é um escândalo que Deus tenha vindo para Se fazer um de nós, que tenha morrido numa cruz. Na lógica deste mundo, aqueles que Jesus proclama felizes são considerados «perdedores», fracos. Ao invés, exalta-se o sucesso a todo o custo, o bem-estar, a arrogância do poder, a afirmação própria em detrimento dos outros. 

Queridos jovens, Jesus interpela-nos para que respondamos à sua proposta de vida, para que decidamos qual estrada queremos seguir a fim de chegar à verdadeira alegria. Trata-se dum grande desafio de fé. Jesus não teve medo de perguntar aos seus discípulos se verdadeiramente queriam segui-Lo ou preferiam ir por outros caminhos (cf. Jo 6, 67). E Simão, denominado Pedro, teve a coragem de responder: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68). Se souberdes, vós também, dizer «sim» a Jesus, a vossa vida jovem encher-se-á de significado, e assim será fecunda. 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

“A Teologia da Libertação sadia nunca foi condenada”. Entrevista com o cardeal Müller

Teologia da Libertação sadia nunca foi condenada, mas foi um elemento legítimo da teologia católica. A teologia tem que dar uma resposta a uma situação, sobretudo na América Latina, onde tantos homens vivem abaixo da dignidade humana, não tem nada que comer ou dar para comer a seus filhos, sem uma formação escolar ou um trabalho. A situação é muito ruim. Por isso, o Santo Padre Francisco também disse que a Igreja é responsável do homem como corpo, como ser social. Há tempo, temos a Doutrina Social da Igreja, mas, também, esta Teologia que se desenvolveu após a Gaudium et Spes e do Vaticano II adquiriu clara legitimidade. O magistério denunciou algumas formas ou ideias que não concordavam com a teologia católica, mas Gustavo Gutiérrez nunca caiu nesta armadilha de certo marxismo ou na luta de classes. Os homens de Jesus Cristo devem superar as guerras sociais, as guerras com as armas, entre tribos. Também na Espanha, todos devem se entender como espanhóis, apesar de haver uma cultura na Catalunha, no País Basco ou em Castela. Todos os países na Europa possuem diferentes culturas: isto enriquece em si mesmo. Contudo, é inútil dividir uma nação. Acreditamos em Pentecostes, todos os homens de diferentes culturas e línguas... Como Igreja, temos que ser exemplos, modelo desta forma de viver dos homens juntos, apesar das diferenças em todas as dimensões da vida humana. Estas diferenças são adequadas à vontade de Deus, e temos que viver juntos. Um corpo em Jesus Cristo. Muitos carismas do Espírito Santo.


PARA LER MAIS:


  • 18/09/2013 - “Müller? Um bom teólogo, mas um pouco ingênuo”, espeta o cardeal Cipriani
  • 07/09/2013 - Estabelecida a paz entre Müller e Gutiérrez
  • 05/09/2013 - Praticar a verdade, e não apenas dizê-la. Artigo de Gerhard Ludwig Müller
  • 23/05/2013 - “É necessário distinguir entre uma Teologia da Libertação equivocada e uma correta”, afirma Gerhard Müller
  • 30/01/2013 - “A contraposição da liturgia do antes e do pós-conciliar é um instrumento ideológico”, destaca Gerhard Müller
  • 15/09/2012 - “Minhas experiências sobre a Teologia da Libertação”. Artigo de Gerhard Müller
  • 05/07/2012 - Müller e a Teologia da Libertação
  • 03/07/2012 - Müller, novo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
  • terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

    “Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza”: Mensagem do Papa para Quaresma

    À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual. A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.

    Não menos preocupante é a miséria moralque consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros – frequentemente jovem – se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspetivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se veem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína económica, anda sempre associada com a miséria espiritualque nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos autossuficientes, vamos a caminho da falência. O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus.

    O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos e irmãs imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.

    Queridos irmãos e irmãs, possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja inteira pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo toda a pessoa. E poderemos fazê-lo na medida em que estivermos configurados com Cristo, que Se fez pobre e nos enriqueceu com a sua pobreza. A Quaresma é um tempo propício para o despojamento; e far-nos-á bem questionar-nos acerca do que nos podemos privar a fim de ajudar e enriquecer a outros com a nossa pobreza. Não esqueçamos que a verdadeira pobreza dói: não seria válido um despojamento sem esta dimensão penitencial. Desconfio da esmola que não custa nem dói.

    segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

    Significado de Hades (Invisível) para os gregos - Fedon XIX - Platão

    E isso, de tal modo que ele me dava a impressão, ele que devia  encaminhar-se para as regiões do Hades, de para lá se dirigir auxiliado por um  concurso divino, e de ir encontrar no além, uma vez chegado, uma felicidade tal como ninguém jamais conheceu.
    Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará,-uma vez lá chegado, com os Deuses.
    "Ora, examinemos a questão por este lado: é, em suma, no Hades que estão as almas dos defuntos, ou não? Pois, conforme diz uma antiga tradição nossa conhecida, lá se encontram as almas dos que se foram daqui, e elas novamente, insisto, para cá voltam e renascem dos mortos. E se assim é, se dos mortos nascem os vivos, que podemos admitir senão que nossas almas devem mesmo estar lá? Sem dúvida, não poderia haver novo nascimento para almas que já não tivessem existência, e para provar esta existência bastaria tornar manifesto que os vivos não nascem senão dos morto.

    Quer dizer, então, que nossas almas existem no Hades?.
    — Parece mui verossímil.
    Hades, para Platão tem aqui a significação de Invisível, o país do Invisível, o reino das sombras. (N. do T.)

    — Mas então a alma, aquilo que é invisível e que se dirige para um outro lugar, um lugar que lhe é semelhante, lugar nobre, lugar puro, lugar invisível, o verdadeiro país de Hades, para chamá-lo por seu verdadeiro nome*30, perto do Deus bom e sábio, lá para onde minha alma deverá encaminhar-se dentro em breve, se Deus quiser; então há de ser essa alma, digo, cujos caracteres e constituição natural.

    *30 Alusão à filosofia contemporânea de Platão: os gregos derivavam a palavra ιδης (Hades) de α e ιδης encontraram nesta palavra a significação de invisível, explicando simplesmente que Hades, como rei dos mortos, mora com as almas destes debaixo da terra, e é por isso invisível aos homens e aos outros deuses. Mas Platão modifica a acepção: Hades é o "invisível verdadeiro", isto é, a substância invariável, eterna e imperceptível aos sentidos, mas captável pelo espírito, que depois da morte se aparta dos obstáculos da matéria (corpo) e vê diretamente o Hades, isto é, o ser eterno. (N. do T.)


    — Portanto, meu caro Cebes, a alma é antes de tudo uma coisa imortal e indestrutível, e nossas almas de fato hão de persistir no Hades!

    domingo, 2 de fevereiro de 2014

    “ DESCENDIT AD INFERNA ”: UMA ANÁLISE DA EXPRESSÃO “DESCEU AO HADES” NO CRISTIANISMO HISTÓRICO

    A expressão “desceu ao Hades,” com referência a Cristo, não é encontrada em nenhum lugar das Escrituras. Afirma-se que o Redentor “desceu às regiões inferiores, à terra” (Ef 4.9), mas não que ele desceu a um lugar chamado Hades depois de sua morte e sepultamento. Todavia, essa expressão apareceu em dois credos da igreja cristã antiga, ainda que com palavras diferentes. A primeira ocorrência está no Credo Apostólico, que tem a expressão latina “descendit ad inferna” (desceu aos infernos/Hades), e a outra encontra-se no Credo de Atanásio, com a expressão latina “ descendit ad inferos” (desceu às regiões inferiores).

    A expressão “desceu ao Hades,” que aparece no Credo Apostólico, não faz parte das suas formas mais antigas. Ele sofreu alterações posteriores, uma das quais foi a expressão acima. Witsius afirma: É digno de nota que, antigamente, aqueles credos que possuíam o artigo sobre a descida de Cristo ao inferno, não continham o artigo relativo ao seu sepultamento, e aqueles nos quais o artigo com respeito à descida ao inferno foi omitido, de fato continham o artigo relativo ao sepultamento. Rufino, o bispo da igreja de Aquiléia, fez alguns comentários sobre o Credo Apostólico em sua Expositio Symboli Apostolici, por volta do final do século IV, dizendo que essa cláusula nunca foi encontrada nas edições romanas (ou ocidentais) do credo. Rufinus acrescenta que a intenção da alteração do Credo em Aquiléia não foi a de acrescer uma nova doutrina, mas a de explicar uma antiga e, portanto, o credo de Aquiléia omitiu a cláusula “foi crucificado, morto e sepultado” e a substituiu por uma nova cláusula, “descendit ad inferna."
     
    Portanto, originalmente a expressão descendit ad inferna não fazia parte do Credo Apostólico. No tempo de Rufino, ela apareceu inserida no Credo, mas não como umacréscimo ao que já havia, sendo apenas uma expressão substitutiva de “crucificado, morto e sepultado.” O Credo de Atanásio (escrito por volta do século V ou VI) segue mais ou menos a mesma idéia do Credo de Aquiléia, onde a expressão “desceu ao Hades” substitui a expressão “sepultado,” não sendo um acréscimo a ela. Até então, não havia nenhuma modificação significativa na doutrina cristã com respeito à situação da pessoa do Redentor ao morrer, pelo menos nas traduções mais conhecidas do Credo.

    sábado, 1 de fevereiro de 2014

    Invisibilidade Social: Eles vivem entre nós, mas por que não enxergamos?

    A invisibilidade afeta cada vez mais pessoas de baixa renda, com pouco grau de escolaridade. Isso se dá devido ao fato de se tratar de profissionais que, de certa forma, são considerados de “pouca significância”. Ledo engano. Os trabalhadores que sofrem tal tipo de preconceito prestam, em sua maioria, serviços importantes para a sociedade. Nos Estados Unidos e outros países desenvolvidos, os imigrantes têm papel importante; sem eles e sua mão de obra barata, a economia fica prejudicada. Afinal são eles os responsáveis pelos serviços de base. Porém, não tem valorização alguma.
    Os personagens invisíveis, curiosamente são aqueles mais “visíveis”, por estarem presentes, na maioria das vezes, em serviços externos e de significativa aparição pública. Eles estão ali trabalhando ou apenas vivendo, e não importa sua ocupação, as pessoas passam por eles e não os enxergam. Estes indivíduos invisíveis trabalham como vendedores ambulantes, porteiros, motoristas de ônibus, trocadores, controladores de vôo,a aeromoças, bilheteiros, faxineiras, entre outros.

    Mas por que não conseguimos enxergá-los? Segundo o psicólogo Fernando Braga da Costa, essa cegueira que atinge a humanidade pode ser encarada como um fenômeno político, mas também como um fenômeno psicológico. É um fenômeno político porque está relacionado, na maioria das vezes, com a desigualdade entre as classes sociais decorrente de um passado histórico. Contudo o que caracteriza uma sociedade invisível? Sociologicamente falando, o “não enxergar” é até contraditório com a realidade atual. As pessoas vêem, mas não enxergam. E por que isso acontece? Grande parte da população brasileira acredita que o “não enxergar” não é uma forma de preconceito, mas uma consequência do dia-a-dia corrido, da falta de comunicação, e até mesmo, do medo da violência.

    Para sanar o problema da invisibilidade, seria preciso um estudo sobre a população brasileira, seus personagens, costumes e a forma como as pessoas lidam com as diferenças. Será que realmente é comum passar por uma pessoa e fingir que ela não está ali? Por que é mais fácil ignorar do que dar um simples bom dia? Essas perguntas podem ser respondidas com um embasamento sociológico. Para as ciências sociais, a invisibilidade social é caracterizada como uma cegueira proveniente das diferenças entre as classes. Alguns recusam-se a ver os outros por não acharem que eles se encaixam como seus iguais. Esta cegueira pública tem seu cunho psicológico vinculado ao fato de que as pessoas participam, pessoalmente, sem saber, da manutenção dessa cegueira na sociedade. Outras formas claras de invisibilidade social: econômica, racial, sexual, etária, entre outras

    Porém, não é apenas a partir das pessoas que essa cegueira se manifesta. Um exemplo é o IBGE, que ao descartar os moradores de rua de seu Censo Populacional, colabora para tornar essa parcela da população ainda mais invisível. Assim, o governo fica impossibilitado de fazer movimentos sociais nesta área. 

    No livro Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social o psicólogo Fernando Braga da Costa ressalta que o objetivo da espécie humana é aparecer e ser notado. Ser valorizado, de alguma forma, é parte integrante da passagem ela vida. É importante para o ser humano ser alguém, ter valor e ser notado por esse valor. É importante ter algum papel social relevante perante a sociedade. E, quando uma pessoa não é notada e não tem valor algum adquirido, ela se torna invisível e as conseqüências disso, na vida do indivíduo, são extremamente complicadas, indo da depressão ao suicídio.

    O sistema capitalista é um dos maiores causadores desse fenômeno de invisibilidade e cegueira pública, pois as grandes diferenças entre classes sociais são o cenário mais comum de discriminação e humilhação. O antropólogo Luiz Eduardo Soares fala, no livro Cabeça de Porco, que a questão da invisibilidade é bem mais complexa do que parece ser. Segundo ele, “os indivíduos não são donos do próprio nariz, por motivos culturais e até mesmo psicológicos”. Sendo assim, a discriminação é cometida devido à influência do meio em que se vive, e das experiências históricas.