sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O Deus crucificado dos pobres



A reflexão sobre a ‘Deus crucificado’ na cristologia da libertação, está fortemente marcada pela teologia d cruz desenvolvida por J. Moltmann. Para o teólogo alemão, Deus não é impassível diante da morte de seu Filho cruz. Esta intuição possibilitou à cristologia da libertação, concluir a não impassibilidade de Deus diante do sofrimento dos pobres neste mundo. O ponto de partida de J. Moltmann é a formulação de uma teologia da cruz crítica que reflete a totalidade do amor de Deus em si mesmo e na história humana, tomando o sofrimento como elemento integrante da própria essência de Deus. Ao considerar o sofrimento como elemento essencial em Deus, esta teologia da cruz não quer amenizar a situação dos sofredores da história, mas desenvolve a intuição de que Deus se abaixa se deixa crucificar e, vence a morte. Para isso, são necessárias a encarnação da fé na realidade e a via negativa da dialética reflexão teológico-libertadora. A teologia da cruz crítica exige uma fé eclesial inserida no mundo dos sofredores para entrar em comunhão com o Deus crucificado. Deus sai de si mesmo e insere-se na realidade histórica, denunciando o escândalo do pecado e anunciando a utopia de uma nova história. A teologia da cruz alude ao seguimento atualizado de Jesus, exigindo radicalidade dos seguidores, até mesmo em nível de martírio, se necessário, para que a causa do Reino de Deus seja efetivada na história. Os seguidores de Jesus se tornam co-crucificados que assumiram radicalmente o projeto amoroso de Deus para a humanidade.

A crucificação do Filho para Moltmann está ligada ao complexo trinitário. O Filho tem sua própria ação e com Ele está o Pai e o Espírito. A cruz se torna o princípio material da doutrina trinitária e, esta o princípio formal do conhecimento daquela. Ao fazer a coligação entre crucificado e a Trindade, o teólogo alemão desenvolve a teoria do Filho abandonado por Deus na cruz. O abandono assume dois significados simultaneamente distintos e profundamente coligados. O primeiro pertence à característica do próprio Filho. A sua função de Redentor no interior da Trindade e na história humana, o faz experimentar profundamente a dor e o sofrimento humanos. O segundo pertence à característica do Pai. Ele é um Criador cheio de bondade e de misericórdia que entrega o Filho à história para a redenção da criação. Ao entregar o Filho, o Pai sofreu por amor e para provar a profundidade de seu amor, abandonou o Filho para que a missão trinitária fosse cumprida também ad extra. A morte de Jesus na cruz é um acontecimento trinitário. O Filho sofre o abandono do Pai que, por sua vez, sofre no seu amor a dor da morte do Filho. Desta dinâmica amorosa emerge o Espírito produtor de amor nas pessoas abandonadas. A história da Trindade está marcada pelo sofrimento e paixão do Filho, como concretização plena do amor de Deus. Sem o sofrimento não há sentido o amor. Na crucificação do Filho, Deus se mostra como condição do amor que apresenta um futuro novo para toda a sua criação.

Com esta história de total entrega amorosa, a Trindade dá a fé um significado escatológico concreto. Ela revela simultaneamente a dimensão transcendente da história e a dimensão histórica da transcendência. A Trindade é aberta à história e abre a história à escatologia. O sofrimento de Cristo na cruz serve para despertar esperança concreta para os sofredores deste mundo. Esta esperança proporciona a formulação do Senhorio de Cristo na história, vida nova – de amor realizado tam
bém pelo sofrimento – para os sofredores da história. Deus se insere na história humana, dá liberdade ao homem para inserir-se na própria história divina. No desenvolvimento das liberdades humana e divina, realiza-se a simpatia entre Deus e o homem, cujo significado é o interesse de Deus pela vida humana. A plenitude de vida está situada dentro da história trinitária. A crucificação de Jesus é crucificação de Deus mesmo enquanto acontecimento livre e gratuito eu possibilita à humanidade dar sentido vital ao sofrimento. Realiza-se deste modo, a comunhão plena entre o homem e Deus.

A teologia da cruz de J. Moltmann tem implicações nas dimensões psíquicas e politica do homem. Esta teologia busca atingir a totalidade da relação entre Deus e o homem por meio de Jesus Cristo. Estas implicações incidem diretamente no discurso cristológico da libertação, pois a práxis de libertação integral dos pobres é o referencial epistemológico presente em toda cristologia libertadora.

O intervento de Deus na história mediato por Jesus Cristo demonstra a solidariedade de Deus para com os pobres tecendo por meio dos crucificados um projeto histórico que expresse na terra a realidade histórica do Reino. Do ponto de vista histórico, Jesus foi um mártir e sua fidelidade ao projeto da cruz demonstra sua filiação divina. Ao morrerem por causa da fé cristã, testemunhando-a na história, os mártires radicalizam o seguimento de Jesus, assumindo a sua cruz como total fidelidade ao projeto do Reino de Deus.

Fonte: GONÇALVES, P. S. L.; Liberationis Mysterium, Roma: Editrice Pontifícia Università Gregoriana, 1997, p. 201-206.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A cruz como compromisso ao Reino



A cruz tem um significado particular para os sofredores, oprimidos e perseguidos. Para eles, a mensagem da crucificação consiste no fato de que Jesus nos ensina a sofrer e morrer de um modo diferente, não no abatimento, mas na fidelidade a uma causa cheia de esperança. "Quem não carrega a sua cruz e não vem após mim, não pode ser meu discípulo" (Lc 14,27), disse Jesus. Mas não basta carregar a cruz: a novidade cristã está em carregá-la como Cristo (segui-lo). Então, "carregar a cruz" não representa uma aceitação estoica, mas a atitude de quem leva ao extremo o seu compromisso: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos ... "; "Tendo amado os seus que estavam no mundo, (Jesus) amou-os até o fim ... " (Jo 13,1).

Esse é o novo modo de carregar a cruz que Cristo - nos ensina com sua morte: o de transformá-la em um símbolo e fonte de amor e entrega, tendo em vista uma libertação sempre incompleta, mas assegurada pela promessa.

A absoluta novidade do trágico destino histórico de Jesus é a promessa que ele encerra promessa que encontraria toda a sua densidade em sua ressurreição e exaltação junto ao Pai. E isso porque, se a cruz é a frustração aparente de uma promessa, a suprema abjeção de Jesus, ao mesmo tempo e paradoxalmente é também o momento de seu triunfo.

Os oprimidos e sofredores de todas as categorias humanas e sociais tendem a projetar no crucificado a sua própria frustração. A cruz seria o fracasso da causa dos justos, dos oprimidos e dos que lutam pela justiça; seria o fracasso das bem-aventuranças; seria a cruz dos abandonados; aparentemente, os fracos e "pequeninos" não podem triunfar.

Mas, se o martírio de Cristo representa precisamente o momento em que o Pai assume a sua causa, dando-lhe para sempre a plena liberdade de sua exaltação e colocando em suas mãos a liberdade de todos os homens, então o fracasso dos abandonados deste mundo é apenas aparente.

Na cruz de Cristo, o Pai assume e reconcilia os que sofrem o abandono e o desespero como forma suprema da impotência e da opressão. Concede-lhes o dom de sofrer, não como vencidos, mas como protagonistas comprometidos com uma causa, que é a mesma causa de Cristo. A identificação dos oprimidos com a cruz não é sua identificação com o abatimento de Cristo, mas com sua energia ressuscitante, que os chama a uma tarefa. Não se trata de "superar" a cruz, mas de transformar a própria cruz em energia para realizar as tarefas impostas pela libertação, própria e dos outros.

A mensagem da cruz - de que podemos sofrer e mesmo morrer de um modo novo - deve-se a essa esperança que ela nos transmite, pois, se fomos levados à crucificação, temos, no Deus crucificado, a promessa certa de que a energia da ressurreição não deixará definitivamente frustrada a tarefa dos que sofrem e morrem por causa da justiça.

A cruz é o símbolo de que a causa dos Justos e oprimidos, aparentemente fracassada, já é aceita pelo Pai e que, portanto, eles não estão abandonados; mas devem se entregar com força ainda maior à missão de fazer reinar a justiça, nas pegadas de um Cristo crucificado, mas nunca abatido decisivamente.

Em Jesus, a cruz é a sua própria missão de libertação dos homens, feita tragédia por causa do pecado desses mesmos homens, mas dotada da energia capaz de recriar mais uma vez essa missão de um modo transfigurado. A cruz dos oprimidos, sofredores e abandonados se dão no interior de sua própria situação injusta e no consequente processo de sua libertação, feito fracasso aparente pelo egoísmo e o pecado, mas com a força de projetar-se para frente de um modo sempre novo.

Fonte: GALILEA, S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 228-230.

A cruz como sinal de esperança



A cruz constitui um sinal decisivo de esperança. Apesar da presença do mal e sobrepondo-se a ele, a cruz é sinal de esperança certa no Reino, de sua eficácia e de sua vitória definitiva sobre todas as formas de pecado.

O paradoxo da cruz consiste no fato de que aquilo que à primeira vista parece um fracasso - a morte de Jesus e o fracasso da causa do Reino; a perseguição e o fracasso dos bons - constitui o começo irreversível da destruição do mal pela raiz, por causa do próprio Cristo, que passou da morte à vida, transformando a cruz em fonte de nova vida e de libertação total. A perseguição e a cruz são a dimensão redentora da fidelidade. Lá onde os meios humanos são impotentes para atacar as raízes de todos os males e de todas as injustiças, o sofrimento e as cruzes que acompanham a vida cristã nos incorporam à perseguição e ao martírio de Cristo. Enxertados com ele na raiz do mal, colaboramos com ele na libertação definitiva, tornando-nos redentores. Assim, completamos "o que falta das tribulações de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja" (Cl 1,24).

A cruz é o símbolo da esperança cristã porque nos ensina que, na história, o mal, o egoísmo e a injustiça não têm a última palavra. A última palavra na história cabe ao bem, à fraternidade, à justiça e à paz.

Fonte: GALILEA, S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 227-228.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A cruz é a luta contra o mal.




As perseguições que Jesus sofreu até a morte revelam a força do mal, do pecado, do egoísmo e todas as suas sequelas, bem como sua oposição ao Reino de Deus. Durante toda a sua missão, desde o início, Jesus experimentou a reação e a oposição dos pecados e egoísmos concretos de sua época. Jesus experimentou o mal como uma realidade (o que ele chamava "a hora das trevas") e como uma realidade poderosa. Não se deve subestimar a força do mal na vida de Jesus, mal que se expressou em pecados e injustiças próprios dos homens e da sociedade da época, como agora continua se concretizando em nossa época. O mal levou Jesus não só à morte (fracasso aparente de sua vida), mas também frustrou seus objetivos imediatos em relação à propagação do Reino, à conversão de Israel e à aceitação de sua obra (fracasso aparente de sua missão).
Jesus crucificado é a prova da força e da persistência do mal no mundo e em cada um de nós.

Pelo aspecto negativo, a cruz nos ensina que o mal é invencível enquanto durar a história. Que sempre reaparece de novas maneiras. Que sua persistência é uma trágica realidade. Que sua oposição aos valores do Reino de Deus é constante. Que, hoje como sempre, ele é capaz de levar ao fracasso a obra da Igreja aqui ou ali, bem como o esforço de cada um de nós para nos convertermos a seguir a Jesus.

A cruz nos ensina que a conversão do mundo contém a profunda dimensão de uma luta contra o mal (o pecado), que hoje se expressa em formas concretas: a corrida armamentista, as ameaças contra a vida, a corrupção do amor, a exploração do homem pelo homem, a fome, a miséria, o materialismo e todas as formas de injustiça. O mal é forte, persistente, coletivo e reaparece continuamente. Esse mal pode sufocar e levar a causa do Reino ao fracasso aparente. Em outras palavras, a crucifixão de Jesus, encarnação da inocência e do bem, nos recorda hoje, através do símbolo do crucifixo, que os inocentes, bons, fracos, pobres e desamparados da terra continuam sendo crucificados. Pela cruz, a paixão de Cristo é a paixão do mundo e esta é a paixão de Cristo.

Fonte: GALILEA, S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 226-227.

A cruz de Cristo e nossa cruz



A cruz não tem sentido se por ela não nos incorporamos à cruz de Cristo. Desse modo, realizamos uma experiência espiritual, uma experiência de Deus. Entendendo a cruz de Jesus com os olhos da fé, podemos entender a nossa própria cruz e a cruz do mundo.

A cruz de Jesus é o sinal de seu amor fiel à causa do Reino de Deus. Não devemos separar a morte de Jesus do resto de sua vida. O martírio de Jesus assume o seu pleno sentido como a consequência dramática e coerente de sua mensagem e de sua obra: a cruz é o símbolo de sua absoluta fidelidade ao Pai. Ela é inseparável das perseguições e conflitos que a precederam, dos critérios, opções e atitudes de Jesus, bem como do conteúdo de sua pregação. Jesus desencadeou o conflito que o levou à cruz, apesar de sua vontade, na medida em que revelou o Deus verdadeiro, na medida em que questionou a decadência religiosa e as deformações de Deus, na medida em que fez dos pobres e dos pecadores públicos o objeto principal de sua solicitude e predileção, na medida em que combateu os ídolos de sua sociedade e na medida em que questionou os seus falsos valores.

O sofrimento é a sequela coerente do seguimento fiel de Jesus Cristo. Com bastante frequência, certo tipo de devoção cristã separa a cruz do resto da vida de Jesus. A devoção à cruz, tão característica do povo latino-americano - e que, em si mesma, constitui uma riqueza -, às vezes venera uma cruz isolada. Muitas vezes, venera a paixão e morte do Senhor não só sem "depois" (a ressurreição), mas também sem "antes": o estilo e o conteúdo da mensagem evangélica que levou Jesus à cruz. A cruz não é um fato isolado e arbitrário nos desígnios do Pai. É o ponto final, que Jesus aceitou por amor, da sua entrega absoluta à causa do Reino. A paixão de Cristo não só expressa o amor fiel de Jesus nesse momento, mas inclui a fidelidade de Jesus ao Reino em todas as perseguições que precederam e prepararam o desenlace da cruz. Na espiritualidade cristã; as formas de cruz e perseguição que aparecem no caminho da fidelidade à justiça do Reino - e, eventualmente, até o martírio - fazem parte do todo da missão do cristão. Constituem a prova de que seu compromisso é verdadeiramente cristão. Sempre desconcertantes e envoltas na obscuridade da fé, as perseguições constituem um dos sinais privilegiados para comprovar a autenticidade cristã.

Fonte: GALILEA, S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 224-226.