Ao ser aplicada
a Jesus, a noção de sumo sacerdote guarda estreita relação com a de Servo de
Deus. Poderíamos até considerá- la como uma variante desta última. a aplicação
da noção de Sumo Sacerdote a Jesus teve, no cristianismo primitivo, um
desenvolvimento muito distinto - e, por outro, esta noção apresenta aspectos
estranhos à figura do Ebed lahweh. É, com efeito, uma concepção cristológica
mais complexa que a a de Servo de Deus, por não relacionar-se exclusivamente à
obra do Jesus terreno.
O sumo sacerdote
é uma figura essencialmente judaica. Torna-se difícil acentuar a imagem do já
que o redentor esperado pelos judeus não parece, à primeira vista, ter traços sacerdotais.
Não obstante, encontramos no judaísmo tardio certos indícios de uma possível
relação entre o Messias-Rei e o Sumo Sacerdote.
A possível
relação se evidencia ao misterioso rei Melquisedeque, citado em Gn 14,18 ss. e
Sl 110,4. Em Gênesis 14,13-24 lemos como Abraão liberta seu sobrinho Ló das
mãos de Kedor-Laorner, rei de Elam, e de seus aliados. Quando Abraão volta como
vencedor da batalha, Melquisedeque sai ao seu encontro e o abençoa e Abraão lhe
dá o dízimo de seu saque. O livro de Gênesis não nos informa nada mais a
respeito deste misterioso rei Melquisedeque diante de quem Abraão, assim, se
humilhou. Sua pessoa também estimulou desde a antiguidade a imaginação dos
judeus.
No célebre Sl
110, que os cristãos não deixam de citar, lemos no verso 4: "Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque". Estas palavras
se dirigem ao rei, a quem são atribuídas as funções sacerdotais de ordem mais
elevada. Incluem-se no quadro da festa judaica da entronização. Assim como o
misterioso rei da época cananéia era ao mesmo tempo sacerdote, aquele que se
espera deve, também, assumir uma função sacerdotal que se eleve muito acima do
sacerdócio ordinário - um sacerdócio que não perece, mas que é eterno. Se aqui
se trata do sacerdócio ideal do rei
- ideia que se
pode encontrar em todo o Antigo Oriente - e se a ideologia real está na base
mesma do messianismo, tem-se o incentivo para uma interpretação messiânica da
figura do sumo sacerdote.
Que Jesus cite o
salmo 110 a fim de mostrar que a descendência davídica do Messias é
problemática, pressupõe que o rei do qual fala este salmo, e que deve ser
sacerdote pela eternidade segundo a ordem de Melquisedeque, não é outro senão o
próprio Messias (Mc 12,35 SS.).
Tudo leva a crer
que no tempo de Jesus não só já se interpretava messianicamente o Salmo 110 mas
que, sobre a base de certas especulações teológicas, o judaísmo identificava o
próprio Melquisedeque, se não com o Messias, ao menos com outras figuras
escatológicas. Afirmam também que a figura do sumo-sacerdote está associada com
a imagem escatológica do Rei-Sacerdote talvez com traços de Adão como homem
ideal ou a partir de especulações gnósticas afirmando ter o sumo-sacerdote
semelhanças com o Arcanjo Miguel.
É possível
verificar uma distinção entre um Messias sacerdotal e um Messias-Rei político,
um Messias de Levi e um Messias de Judá, "Messias de Aarão" e "Messias
de Israel", o Messias real estando subordinado ao Messias sacerdotal. É
importante advertir que nestes textos a identificação do sumo sacerdote com o
Messias se realiza.
Chegamos, pois,
à conclusão que o judaísmo já conhecia um sacerdote ideal que devia consumar,
no final dos tempos, o sacerdócio judaico, como o único sacerdote verdadeiro. A
noção judaica de sacerdócio deveria, inevitavelmente mais cedo ou mais tarde, fazer
surgir semelhante esperança, por ser, em virtude de sua função, o Sumo
Sacerdote o verdadeiro mediador entre Deus e seu povo e ocupar, em razão disso,
uma posição soberanamente elevada. O judaísmo possuía, na pessoa de seu sumo
sacerdote, um homem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a
necessidade do povo de contato com Deus. Porém, quanto mais o sacerdote existente
decepcionava as altas esperanças que nele se depositavam, tanto mais era
inevitável que a esperança do fim dos tempos.
Porém, este sumo
sacerdote esperado não somente realiza o cumprimento do sacerdócio, mas deve,
antes de tudo, superar as insuficiências do sacerdócio representado pelo sumo
sacerdote empírico. Sua missão é, pois, determinada por oposição ao papel deste
último. É importante esta observação para compreendermos como esta noção de
sumo sacerdote foi transferida para Jesus.
Fonte: CULLMANN, O.,
Cristologia do Novo Testamento, Editora Liber: São Paulo, 2001, p. 113-125
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