quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Jesus, o Salvador, n o cristianismo primitivo

Poderia, à primeira vista, alguém sentir-se tentado a fazer derivar unicamente do helenismo a aplicação a Jesus do título Sotér; já que, segundo temos visto, este título aparece pela primeira vez, quase exclusivamente, nos escritos cristãos nascidos nos meios helenísticos.

Seu emprego no paganismo pode, com efeito, ter favorecido sua utilização cristã por um desenvolvimento paralelo ao assinalado a propósito do título Kyrios Iesous Christos. Porém, assim como o nome Kyrios aplicado a Jesus se originou no judaísmo, o título de Sotér deriva mais do Antigo Testamento e do judaísmo que do helenismo. Os primeiros textos cristãos que chamam a Jesus "Salvador", por tardios que sejam, não denotam influência alguma da concepção helenística de Sotér. Com efeito, quase todas as passagens em que Jesus é chamado "Salvador" contêm exclusivamente temas cristãos.

Durante sua vida Jesus nunca foi chamado Sotér por ninguém, nem se chamou a si mesmo assim; e inclusive na época em que este nome lhe foi ocasionalmente conferido, não se relacionava só a uma das funções de sua obra terrena, mas a toda a sua obra, vista, além disso, à luz de sua ressurreição e de sua glorificação. Como o de Kyrios, o título Sotér pressupõe toda a obra de Jesus realizada e sancionada por sua Ascensão.

Já ficou indicado que se chama a Jesus Sotér sobretudo nos escritos que dão o mesmo nome a Deus, acima de tudo nas Epístolas Pastorais, onde Deus é chamado, preferentemente, o "Salvador" (1 Tm 1,1; 2,3; 4,10; Tito 1,3; 2,10; 3,4), mas também no Evangelho de Lucas, onde o Magnificat (Lc 1,47) chama a Deus "Salvador", ao estilo do Antigo Testamento onde, por outro lado, o relato de Natal anuncia: "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo, o Senhor" (Lc 2,11).

E a Epístola de Judas dirige a doxologia final (v. 25) "ao único Deus, nosso salvador, por Jesus Cristo nosso senhor". Não é, então, surpreendente que a segunda Epístola de Pedro, tão estreitamente relacionada com a de Judas, empregue naturalmente a expressão Soter Iesus Christus associada a Kyrius,como em Lucas 2,11. O que vem confirmar a idéia de que a elevação de Cristo à soberania divina ,exerceu influência decisiva no emprego deste título cristológico. E, pois, permitido considerar como fonte secundária o uso deste título no culto ao imperador.

Trata-se, pois, principalmente da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo Testamento reserva a Deus. Jesus é o Sotér porque salvará a seu povo do pecado. Assim explica Mt 1,21 o nome "Jesus". Efetivamente, este nome próprio é uma das formas hebraicas de "Salvador", referido a Deus pelo Antigo Testamento. Por isso, ao menos ali onde se deve pressupor um conhecimento do hebraico, temos que levar em consideração a significação do nome "Jesus" para explicar a origem do título Soter Iesus. "Jesus", com efeito, não significa outra coisa que Soter, salvador. Entretanto, o autor do Evangelho de Mateus seguramente não era o único a sabê-lo.

Porém, o vínculo com o Antigo Testamento aparece primordialmente na afirmação de que Jesus veio salvar ao povo do pecado e da morte. A despeito de analogias terminológicas com o culto ao imperador e em particular com sua "epifania", é esta idéia do Antigo Testamento que se reflete nas declarações relativas à aparição do "Salvador" Jesus Cristo quando do seu nascimento (Lc 2, 11), à "epifania de nosso Salvador Jesus Cristo que destruiu a morte" (2 Tm 1.10), e à sua epifania gloriosa futura (Tito 2.13).

Após haver evocado esta epifania do fim dos tempos, esta última passagem acrescentar: que se deu a si mesmo por nós para redimir-nos de toda iniquidade, e fazer um povo seu purificado por Ele. É sintomático que este versículo, em que o Cristo é exaltado como o soberano que vem - talvez em oposição consciente ou inconsciente à epifania dos soberanos terrestres deificados -lembre precisamente a obra passada, terrena de Jesus, sobre a qual repousa sua elevação soberana. Atos 5, 31 associa da mesma forma a glorificação de Jesus, sua elevação à destra de Deus como Sotér, à afirmação de que esta glorificação há de trazer a Israel "o arrependimento e o perdão dos pecados". Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias de pensamento que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é Sotér porque nos salvou do pecado.


Este título, Sotér, se bem que pode ser considerado, com justiça, como uma variante do título Kyrios - do qual até é possível que provenha - põe em evidência, contudo, uma idéia que aparece com menos nitidez na noção de Kyrios: a obra expiatória de Cristo é condição essencial para sua elevação à categoria de Sotér divino. Lembremos Filipenses 2,9: "Por isso (isto é, por causa de sua humilhação na obediência até a cruz) Deus mais que o elevou" e lhe deu um nome, Kyrios, que" está acima de todo nome". É isto que, em solo cristão, está implicitamente contido no título Sotér: Jesus é Sotér porque reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a mais o demonstra: mesmo onde, como na doxologia de Judas 25 - conforme o uso do Antigo Testamento - é Deus que é chamado Sotér, as palavras "por Jesus Cristo nosso Senhor" remetem à obra expiatória de Cristo, fundamento de toda "salvação" divina.

No entanto, o título Sotér não é mera variante de Ebed Iahweh, como se poderia crer ao ver quanto a salvação, o Soter que traz o "Salvador", está inextricavelmente ligada a sua morte expiatória. Pois não adquire o sofrimento expiatório pelo perdão dos pecados seu sentido senão a partir da sanção divina que recebeu pela elevação de Jesus à dignidade de Kyrios.

Desde quando se chamou a Jesus Sotér? Se bem que seja tardia a generalização deste termo, não foi conhecido relativamente cedo? Entre as epístolas atribuídas a Paulo, não são as Pastorais as primeiras a utilizá-lo. Ainda que tivéssemos que considerar deuteropaulino a passagem da Epístola aos Efésios (5, 23), em que Cristo, chefe da igreja, é ao mesmo tempo chamado "Salvador do corpo" e onde, da mesma forma, se faz alusão à sua glorificação, restaria a passagem mais antiga e certamente paulina de Fl 3, 20: "Esperamos também (do céu) como Salvador ao Senhor Jesus Cristo". Eis aqui de novo essa característica associação de Sotér e Kyrios, diferentemente de 2 Tm 1, 10 onde Cristo já consumou seu papel de Sotér, mas concordando com Tito 2, 13, é dito que Cristo realizará sua função de Sotér no fim dos tempos.

Já vimos que o significado do nome de "Jesus", em terreno semítico, devia convidar a uma aproximação ao título de "Salvador", empregado no Antigo Testamento e que, sem dúvida, não foi o evangelista Mateus o primeiro a fazê-lo (Mt 1, 21). Ademais, é evidente que na Palestina, "Salvador" não podia converter-se no título de Jesus, porque nesse caso teria que repetir o nome próprio "Jesus": a Iesous Sotér corresponderia Ieschoua Ieschoua. Resulta, então, que Jesus só poderia chamar-se "Salvador" ali onde se falava grego. Porém, isto ocorreu, por certo, muito cedo; tanto mais quanto que na igreja palestina já se tinha a convicção de que a Jesus não só se chamava "Salvador" (Ieschoua = Jesus) senão que ele o era.


Fonte: Fonte: CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, Editora Liber: São Paulo, 2001, p. 311-319

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