Poderia, à
primeira vista, alguém sentir-se tentado a fazer derivar unicamente do
helenismo a aplicação a Jesus do título Sotér; já que, segundo temos visto,
este título aparece pela primeira vez, quase exclusivamente, nos escritos cristãos
nascidos nos meios helenísticos.
Seu emprego no
paganismo pode, com efeito, ter favorecido sua utilização cristã por um
desenvolvimento paralelo ao assinalado a propósito do título Kyrios Iesous
Christos. Porém, assim como o nome Kyrios aplicado a Jesus se originou no
judaísmo, o título de Sotér deriva mais do Antigo Testamento e do judaísmo que
do helenismo. Os primeiros textos cristãos que chamam a Jesus
"Salvador", por tardios que sejam, não denotam influência alguma da
concepção helenística de Sotér. Com efeito, quase todas as passagens em que
Jesus é chamado "Salvador" contêm exclusivamente temas cristãos.
Durante sua vida
Jesus nunca foi chamado Sotér por ninguém, nem se chamou a si mesmo assim; e
inclusive na época em que este nome lhe foi ocasionalmente conferido, não se
relacionava só a uma das funções de sua obra terrena, mas a toda a sua obra,
vista, além disso, à luz de sua ressurreição e de sua glorificação. Como o de
Kyrios, o título Sotér pressupõe toda a obra de Jesus realizada e sancionada
por sua Ascensão.
Já ficou
indicado que se chama a Jesus Sotér sobretudo nos escritos que dão o mesmo nome
a Deus, acima de tudo nas Epístolas Pastorais, onde Deus é chamado,
preferentemente, o "Salvador" (1 Tm 1,1; 2,3; 4,10; Tito 1,3; 2,10;
3,4), mas também no Evangelho de Lucas, onde o Magnificat (Lc 1,47) chama a
Deus "Salvador", ao estilo do Antigo Testamento onde, por outro lado,
o relato de Natal anuncia: "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador,
que é o Cristo, o Senhor" (Lc 2,11).
E a Epístola de
Judas dirige a doxologia final (v. 25) "ao único Deus, nosso salvador, por
Jesus Cristo nosso senhor". Não é, então, surpreendente que a segunda
Epístola de Pedro, tão estreitamente relacionada com a de Judas, empregue
naturalmente a expressão Soter Iesus Christus associada a Kyrius,como em Lucas
2,11. O que vem confirmar a idéia de que a elevação de Cristo à soberania
divina ,exerceu influência decisiva no emprego deste título cristológico. E,
pois, permitido considerar como fonte secundária o uso deste título no culto ao
imperador.
Trata-se, pois,
principalmente da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo Testamento
reserva a Deus. Jesus é o Sotér porque salvará a seu povo do pecado. Assim
explica Mt 1,21 o nome "Jesus". Efetivamente, este nome próprio é uma
das formas hebraicas de "Salvador", referido a Deus pelo Antigo
Testamento. Por isso, ao menos ali onde se deve pressupor um conhecimento do
hebraico, temos que levar em consideração a significação do nome
"Jesus" para explicar a origem do título Soter Iesus. "Jesus",
com efeito, não significa outra coisa que Soter, salvador. Entretanto, o autor
do Evangelho de Mateus seguramente não era o único a sabê-lo.
Porém, o vínculo
com o Antigo Testamento aparece primordialmente na afirmação de que Jesus veio
salvar ao povo do pecado e da morte. A despeito de analogias terminológicas com
o culto ao imperador e em particular com sua "epifania", é esta idéia
do Antigo Testamento que se reflete nas declarações relativas à aparição do
"Salvador" Jesus Cristo quando do seu nascimento (Lc 2, 11), à
"epifania de nosso Salvador Jesus Cristo que destruiu a morte" (2 Tm
1.10), e à sua epifania gloriosa futura (Tito 2.13).
Após haver evocado
esta epifania do fim dos tempos, esta última passagem acrescentar: que se deu a
si mesmo por nós para redimir-nos de toda iniquidade, e fazer um povo seu
purificado por Ele. É sintomático que este versículo, em que o Cristo é
exaltado como o soberano que vem - talvez em oposição consciente ou inconsciente
à epifania dos soberanos terrestres deificados -lembre precisamente a obra
passada, terrena de Jesus, sobre a qual repousa sua elevação soberana. Atos 5, 31
associa da mesma forma a glorificação de Jesus, sua elevação à destra de Deus
como Sotér, à afirmação de que esta glorificação há de trazer a Israel "o
arrependimento e o perdão dos pecados". Sem dúvida, aqui estamos dentro de
categorias de pensamento que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O
Cristo é Sotér porque nos salvou do pecado.
Este título,
Sotér, se bem que pode ser considerado, com justiça, como uma variante do
título Kyrios - do qual até é possível que provenha - põe em evidência,
contudo, uma idéia que aparece com menos nitidez na noção de Kyrios: a obra
expiatória de Cristo é condição essencial para sua elevação à categoria de
Sotér divino. Lembremos Filipenses 2,9: "Por isso (isto é, por causa de
sua humilhação na obediência até a cruz) Deus mais que o elevou" e lhe deu
um nome, Kyrios, que" está acima de todo nome". É isto que, em solo
cristão, está implicitamente contido no título Sotér: Jesus é Sotér porque
reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a mais o demonstra: mesmo
onde, como na doxologia de Judas 25 - conforme o uso do Antigo Testamento - é
Deus que é chamado Sotér, as palavras "por Jesus Cristo nosso Senhor"
remetem à obra expiatória de Cristo, fundamento de toda "salvação"
divina.
No entanto, o
título Sotér não é mera variante de Ebed Iahweh, como se poderia crer ao ver
quanto a salvação, o Soter que traz o "Salvador", está
inextricavelmente ligada a sua morte expiatória. Pois não adquire o sofrimento
expiatório pelo perdão dos pecados seu sentido senão a partir da sanção divina
que recebeu pela elevação de Jesus à dignidade de Kyrios.
Desde quando se
chamou a Jesus Sotér? Se bem que seja tardia a generalização deste termo, não
foi conhecido relativamente cedo? Entre as epístolas atribuídas a Paulo, não
são as Pastorais as primeiras a utilizá-lo. Ainda que tivéssemos que considerar
deuteropaulino a passagem da Epístola aos Efésios (5, 23), em que Cristo, chefe
da igreja, é ao mesmo tempo chamado "Salvador do corpo" e onde, da
mesma forma, se faz alusão à sua glorificação, restaria a passagem mais antiga
e certamente paulina de Fl 3, 20: "Esperamos também (do céu) como Salvador
ao Senhor Jesus Cristo". Eis aqui de novo essa característica associação
de Sotér e Kyrios, diferentemente de 2 Tm 1, 10 onde Cristo já consumou seu papel
de Sotér, mas concordando com Tito 2, 13, é dito que Cristo realizará sua função
de Sotér no fim dos tempos.
Já vimos que o
significado do nome de "Jesus", em terreno semítico, devia convidar a
uma aproximação ao título de "Salvador", empregado no Antigo
Testamento e que, sem dúvida, não foi o evangelista Mateus o primeiro a fazê-lo
(Mt 1, 21). Ademais, é evidente que na Palestina, "Salvador" não
podia converter-se no título de Jesus, porque nesse caso teria que repetir o
nome próprio "Jesus": a Iesous Sotér corresponderia Ieschoua
Ieschoua. Resulta, então, que Jesus só poderia chamar-se "Salvador"
ali onde se falava grego. Porém, isto ocorreu, por certo, muito cedo; tanto
mais quanto que na igreja palestina já se tinha a convicção de que a Jesus não só
se chamava "Salvador" (Ieschoua = Jesus) senão que ele o era.
Fonte: Fonte: CULLMANN, O., Cristologia do Novo
Testamento, Editora Liber: São Paulo, 2001, p. 311-319
Nenhum comentário:
Postar um comentário