O que costumamos
chamar de "cruz" ou "cruzes" na linguagem da
espiritualidade (pois o termo é próprio da cultura cristã) não é senão os
sofrimentos e contradições da vida. A cruz é um dado da condição humana, não
foi inventada por Jesus Cristo nem pela mística medieval.
A cruz não tem
nenhum valor em si mesma: ela constitui uma experiência humana negativa que
ninguém está chamado a buscar. Mas, por outro lado, é um fato do qual não se
pode escapar e diante do qual, como seres humanos, devemos tomar uma atitude e procurar
dar-lhe um sentido.
É no
cristianismo que a cruz encontra toda a sua significação. Não porque o
cristianismo nos ensine a eliminar a cruz ou faça da cruz um valor em si mesmo,
mas porque, em virtude de Cristo, que assumiu toda a condição humana, inclusive
o fato do sofrimento e da cruz, a experiência da cruz pode ser santificadora e até
mesmo libertadora para o homem, podendo encontrar um lugar na vinda do Reino.
Por causa de
Cristo, o fato da cruz pode ser assumido como uma dimensão da espiritualidade.
É assim que compreendemos o chamado de Jesus a "tomar a cruz",
"carregar a cruz de cada dia", "perder a vida" ou
"morrer como um grão de trigo" (cf. Mt 11,12; 16,21-24; 17,15; Jo
12,24-26; etc.).
Somente no
seguimento de Cristo é que a cruz nos faz crescer na vida segundo o Espírito.
As reflexões anteriores nos mostram que não existe propriamente uma
"espiritualidade da cruz", como também não existe uma espiritual
idade da pobreza, da obediência ou da abnegação, mas basicamente uma
espiritualidade do seguimento de Cristo. Esse é o valor que funda a espiritualidade
cristã. É o seguimento de Jesus, através do Espírito, que nos leva à pobreza, à
abnegação ou à cruz. A cruz não deve ser buscada por Si mesma: ela certamente é
encontrada, como valor espiritual, na medida em que seguimos a Cristo. Como
dimensão da espiritualidade, a cruz se apresenta sob três categorias:
Em primeiro
lugar, a cruz faz parte da condição humana. Nós somos limitados e vulneráveis:
a doença, a frustração, o sofrimento e a morte são parte integrante de nossa
vida. Viver essa experiência da vida à maneira de Cristo -:- que nos ensinou a
viver a limitação humana como filhos de Deus - já constitui espiritualidade.
Pela fé, sabemos que o dinamismo de cruz e morte que há em nós faz parte do dinamismo
pascal da vida cristã, que, revestindo-nos de Jesus ao mesmo tempo sofredor e
ressuscitado, nos transmite a vida segundo o Espírito. A experiência cristã da
cruz é uma experiência pascal;
Em segundo
lugar, a cruz cristã é o preço e o caminho da conversão. Na medida em que estamos
arraigados no egoísmo e na tendência ao pecado, o caminho de conversão ao
seguimento de Jesus pelo Espírito é um caminho de superação, de morte do
"homem velho" (Rm 6), de renúncia a viver "segundo a carne"
(cf. Mt 18,8; Lc 14,33; etc.). não á conversão cristã e não há nem mesmo superação
e renovação "humanas", sem essa forma de cruz que é a renúncia a nós
mesmos. É isso o que Cristo quer dizer com seu chamado a "carregar a cruz
de cada dia".
Em terceiro
lugar, a cruz como sofrimento e contradição, como perseguição e mesmo como
morte é um resultado do compromisso fiel com Jesus e seu Evangelho do Reino.
Essa é a dimensão mais rica e eminente da cruz na espiritualidade cristã,
porque foi esse o modo eminente como Cristo experimentou a cruz. A maior prova
de amor e seguimento é a de identificar-se com Jesus perseguido e martirizado
por causa do Reino.
Por isso, a
perseguição e o martírio constituem uma bem-aventurança (Mt 5,10-12; Lc
6,22-23): a cruz da testemunha fiel da fé e da justiça do Reino é um modo
privilegiado de nos revestir de Cristo e nos fazer "nascer de novo".
De certa forma, esta bem-aventurança resume a experiência da cruz como valor
cristão.
A perseguição de
que nos fala a bem-aventurança inclui todas as formas de contradição por causa
do Reino - "quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem
todo o mal contra vós" -, das quais o martírio é a forma suprema, Assim, a
experiência espiritual da cruz tem sido uma constante na vida da Igreja até os
atuais perseguidos e mártires por causa da justiça do Reino na América Latina.
Fonte: GALILEA,
S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 222-224.
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