terça-feira, 19 de novembro de 2013

A experiência da cruz como espiritualidade



O que costumamos chamar de "cruz" ou "cruzes" na linguagem da espiritualidade (pois o termo é próprio da cultura cristã) não é senão os sofrimentos e contradições da vida. A cruz é um dado da condição humana, não foi inventada por Jesus Cristo nem pela mística medieval.

A cruz não tem nenhum valor em si mesma: ela constitui uma experiência humana negativa que ninguém está chamado a buscar. Mas, por outro lado, é um fato do qual não se pode escapar e diante do qual, como seres humanos, devemos tomar uma atitude e procurar dar-lhe um sentido.

É no cristianismo que a cruz encontra toda a sua significação. Não porque o cristianismo nos ensine a eliminar a cruz ou faça da cruz um valor em si mesmo, mas porque, em virtude de Cristo, que assumiu toda a condição humana, inclusive o fato do sofrimento e da cruz, a experiência da cruz pode ser santificadora e até mesmo libertadora para o homem, podendo encontrar um lugar na vinda do Reino.

Por causa de Cristo, o fato da cruz pode ser assumido como uma dimensão da espiritualidade. É assim que compreendemos o chamado de Jesus a "tomar a cruz", "carregar a cruz de cada dia", "perder a vida" ou "morrer como um grão de trigo" (cf. Mt 11,12; 16,21-24; 17,15; Jo 12,24-26; etc.).

Somente no seguimento de Cristo é que a cruz nos faz crescer na vida segundo o Espírito. As reflexões anteriores nos mostram que não existe propriamente uma "espiritualidade da cruz", como também não existe uma espiritual idade da pobreza, da obediência ou da abnegação, mas basicamente uma espiritualidade do seguimento de Cristo. Esse é o valor que funda a espiritualidade cristã. É o seguimento de Jesus, através do Espírito, que nos leva à pobreza, à abnegação ou à cruz. A cruz não deve ser buscada por Si mesma: ela certamente é encontrada, como valor espiritual, na medida em que seguimos a Cristo. Como dimensão da espiritualidade, a cruz se apresenta sob três categorias:

Em primeiro lugar, a cruz faz parte da condição humana. Nós somos limitados e vulneráveis: a doença, a frustração, o sofrimento e a morte são parte integrante de nossa vida. Viver essa experiência da vida à maneira de Cristo -:- que nos ensinou a viver a limitação humana como filhos de Deus - já constitui espiritualidade. Pela fé, sabemos que o dinamismo de cruz e morte que há em nós faz parte do dinamismo pascal da vida cristã, que, revestindo-nos de Jesus ao mesmo tempo sofredor e ressuscitado, nos transmite a vida segundo o Espírito. A experiência cristã da cruz é uma experiência pascal;

Em segundo lugar, a cruz cristã é o preço e o caminho da conversão. Na medida em que estamos arraigados no egoísmo e na tendência ao pecado, o caminho de conversão ao seguimento de Jesus pelo Espírito é um caminho de superação, de morte do "homem velho" (Rm 6), de renúncia a viver "segundo a carne" (cf. Mt 18,8; Lc 14,33; etc.). não á conversão cristã e não há nem mesmo superação e renovação "humanas", sem essa forma de cruz que é a renúncia a nós mesmos. É isso o que Cristo quer dizer com seu chamado a "carregar a cruz de cada dia".

Em terceiro lugar, a cruz como sofrimento e contradição, como perseguição e mesmo como morte é um resultado do compromisso fiel com Jesus e seu Evangelho do Reino. Essa é a dimensão mais rica e eminente da cruz na espiritualidade cristã, porque foi esse o modo eminente como Cristo experimentou a cruz. A maior prova de amor e seguimento é a de identificar-se com Jesus perseguido e martirizado por causa do Reino.

Por isso, a perseguição e o martírio constituem uma bem-aventurança (Mt 5,10-12; Lc 6,22-23): a cruz da testemunha fiel da fé e da justiça do Reino é um modo privilegiado de nos revestir de Cristo e nos fazer "nascer de novo". De certa forma, esta bem-aventurança resume a experiência da cruz como valor cristão.

A perseguição de que nos fala a bem-aventurança inclui todas as formas de contradição por causa do Reino - "quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós" -, das quais o martírio é a forma suprema, Assim, a experiência espiritual da cruz tem sido uma constante na vida da Igreja até os atuais perseguidos e mártires por causa da justiça do Reino na América Latina.

Fonte: GALILEA, S.; O Caminho da Espiritualidade, Edições Paulinas: São Paulo, 1985, p. 222-224.

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