Embora não tenha sido a única motivação
para a reforma interna da Igreja, a utopia da continência clerical foi parte de
um complexo jogo de interesses adotados pelo papado para moralizar seu clero,
exigir dele o autocontrole, face ao considerado mundano, e o cumprimento de seu
papel no ministério eclesiástico.
Como já foi assinalado, o papado
esforçava-se por distinguir os clérigos dos leigos. As autoridades romanas
partiam da crença de que os clérigos pertenciam a um status superior ao do
leigo, sendo, portanto, um grupo idealmente incorruptível e que deveria manter
o antigo preceito estóico de apatia diante das coisas mundanas. Dessa forma, o
papado formulou estratégias para controlar mais de perto o comportamento de
clérigos, pois os casados ou em concubinato não estavam habilitados, na
perspectiva de Roma, para reger a ordem matrimonial, pois não preenchiam o
principal papel almejado pelos reformadores romanos: o de serem imunes às
práticas matrimoniais dos leigos. Neste sentido, os reformadores papais
procuraram, dentre outras iniciativas, impor a continência e o celibato aos
homens da Igreja. É necessário ressaltar, porém, que nem todos precisavam
aceitar o celibato como uma obrigação. Essa distinção relacionava-se à ordem
sagrada que o clérigo portava.
Entendidas como sacramento, as ordens
sagradas deveriam suscitar uma mudança de condição da pessoa consagrada ao
ofício pastoral. Por conseguinte, pelo menos para o papado, havia uma distinção
entre os clérigos menores e os maiores. Essa distinção era fundamental para
assinalar quais clérigos poderiam se casar e quais estavam proibidos de
contrair relações conjugais. O primeiro, sendo um secular e não tendo recebido
as ordens sacras maiores, poderia casar-se e ser admitido no serviço de algum santuário
ou igreja; já o segundo, na posse dessas ordens, era aquele a quem cabia a
administração dos sacramentos, a direção da comunidade e/ ou a celebração das
cerimônias litúrgicas e, por isso, não poderia contrair matrimônio.
A imposição do celibato aos clérigos
regulares e aos seculares das ordens maiores estava relacionada a uma série de
questões práticas, tais como a preocupação com a preservação do patrimônio
eclesiástico e a necessidade destes indivíduos dedicarem-se integralmente às
funções eclesiásticas. Contudo, também havia a convicção de que estes clérigos
deveriam ser santificados, ou seja, estar separados dos demais por seu
comportamento irrepreensível, abstendo-se dos prazeres, em especial os ligados
ao corpo, distinguindo-se dos leigos, a fim de estarem mais próximos de Deus e aptos
para os ofícios pastorais, assumidos depois da ordenação. Acreditava- se que só
por meio de um corpo eclesiástico que se diferenciasse dos leigos e estivesse
totalmente comprometido com as causas da reforma da ecclesia universalis
poderia se alcançar a unidade da Igreja e a submissão dos fiéis.
Porém, na busca em prol da imposição do
celibato, as restrições feitas pelos reformadores romanos sofreram oficialmente
ajustes, adaptando o ideal de comportamento clerical às práticas cotidianas.
Neste sentido, em Latrão IV, o mesmo cânone que restringe a conduta sexual do
clero apresenta outro aspecto importante, aparentemente contraditório se
comparado com o conjunto de prescrições papais: aqueles clérigos que, conforme o
costume de sua região, não precisassem renunciar ao matrimônio, deveriam manter
a continência dentro de um relacionamento conjugal legítimo.
Essa prescrição parece contradizer o
conjunto de sanções previstas pelos reformadores romanos quanto à questão da
convivência de clérigos com mulheres desde o primeiro concílio geral da Igreja
do Ocidente, o já citado lateranense I. Como interpretar a concessão feita pelo
cânone 14 de Latrão IV? Em primeiro lugar, esse cânone aponta para o fato de
que a continência não se refere somente à total abstinência sexual e possuía,
para o papado, um sentido mais amplo que valida o oficio clerical, apesar da
tendência de associar continência[1] e
celibato.
Portanto, a definição de continência
dependia do contexto lingüístico no qual e para o qual foi elaborado. Assim,
nem todos os clérigos deveriam ser celibatários, mas a todos os clérigos era
exigida a moderação e a discrição no que concerne ao corpo, ou seja, deveriam
adotar a continência como modo de vida. Em segundo, há que realçar a capacidade
de adaptação das normas da Igreja Romana quanto ao celibato face às novas
condições históricas.
Desde 1054, entre outros motivos, as
disputas entre Ocidente e Oriente giravam em torno da imposição do celibato. As
autoridades romanas eram mais restritivas do que os bizantinos quanto ao
casamento clerical. Contudo, depois de várias disputas, no início do século
XIII, a Igreja Romana havia momentaneamente restabelecido vínculos com a Igreja
do Oriente. Desta maneira, o clima de relativa concórdia e aliança entre estas
duas Igrejas abriu uma fenda no conjunto das prescrições elaboradas pelos reformadores
romanos, permitindo uma flexibilização no tocante ao matrimônio dos clérigos.
À luz destas constatações, algumas
questões: em que outras situações as práticas cotidianas dos clérigos divergiam
dos ideais de continência e celibato papais? De que maneira a cúria pontifícia
respondeu aos clérigos incontinentes e/ou casados? Como respondia às denúncias
de casamento clerical? A partir da análise de casos particulares, reconstruídos
por meio das decretais emitidas pelo papado durante o governo de Inocêncio III (1198-1216),
é possível traçar algumas considerações sobre as questões aqui levantadas.
Fonte: SILVA, A. C. L. F. da; LIMA, M.
P. A Reforma Papal, a continência e o celibato..., in: História: Questões &
Debates, Curitiba, n. 37, p. 83-109, 2002. Editora UFPR.
[1] A noção medieval de continência
provém do verbo latino continere, que significava conter, manter, reter,
conservar, sustentar, encerrar, guardar, moderar, refrear, reprimir etc. Logo,
uma pessoa continente, seguindo a raiz etimológica e o sentido cristão do
termo, era aquela que encerrava, incluía em si, a manutenção das virtudes da
abstinência, da privação dos prazeres e da moderação nas palavras, gestos e
atos no cotidiano. Na documentação papal, este vocábulo oscila: ora significando
total abstinência do prazer e a tudo que ele se refere, inclusive o ato sexual,
ora designando apenas moderação e equilíbrio no comportamento exterior, sem que
se excluísse alguma relação com a prática sexual.