quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A continência e o celibato



Embora não tenha sido a única motivação para a reforma interna da Igreja, a utopia da continência clerical foi parte de um complexo jogo de interesses adotados pelo papado para moralizar seu clero, exigir dele o autocontrole, face ao considerado mundano, e o cumprimento de seu papel no ministério eclesiástico.

Como já foi assinalado, o papado esforçava-se por distinguir os clérigos dos leigos. As autoridades romanas partiam da crença de que os clérigos pertenciam a um status superior ao do leigo, sendo, portanto, um grupo idealmente incorruptível e que deveria manter o antigo preceito estóico de apatia diante das coisas mundanas. Dessa forma, o papado formulou estratégias para controlar mais de perto o comportamento de clérigos, pois os casados ou em concubinato não estavam habilitados, na perspectiva de Roma, para reger a ordem matrimonial, pois não preenchiam o principal papel almejado pelos reformadores romanos: o de serem imunes às práticas matrimoniais dos leigos. Neste sentido, os reformadores papais procuraram, dentre outras iniciativas, impor a continência e o celibato aos homens da Igreja. É necessário ressaltar, porém, que nem todos precisavam aceitar o celibato como uma obrigação. Essa distinção relacionava-se à ordem sagrada que o clérigo portava.

Entendidas como sacramento, as ordens sagradas deveriam suscitar uma mudança de condição da pessoa consagrada ao ofício pastoral. Por conseguinte, pelo menos para o papado, havia uma distinção entre os clérigos menores e os maiores. Essa distinção era fundamental para assinalar quais clérigos poderiam se casar e quais estavam proibidos de contrair relações conjugais. O primeiro, sendo um secular e não tendo recebido as ordens sacras maiores, poderia casar-se e ser admitido no serviço de algum santuário ou igreja; já o segundo, na posse dessas ordens, era aquele a quem cabia a administração dos sacramentos, a direção da comunidade e/ ou a celebração das cerimônias litúrgicas e, por isso, não poderia contrair matrimônio.

A imposição do celibato aos clérigos regulares e aos seculares das ordens maiores estava relacionada a uma série de questões práticas, tais como a preocupação com a preservação do patrimônio eclesiástico e a necessidade destes indivíduos dedicarem-se integralmente às funções eclesiásticas. Contudo, também havia a convicção de que estes clérigos deveriam ser santificados, ou seja, estar separados dos demais por seu comportamento irrepreensível, abstendo-se dos prazeres, em especial os ligados ao corpo, distinguindo-se dos leigos, a fim de estarem mais próximos de Deus e aptos para os ofícios pastorais, assumidos depois da ordenação. Acreditava- se que só por meio de um corpo eclesiástico que se diferenciasse dos leigos e estivesse totalmente comprometido com as causas da reforma da ecclesia universalis poderia se alcançar a unidade da Igreja e a submissão dos fiéis.

Porém, na busca em prol da imposição do celibato, as restrições feitas pelos reformadores romanos sofreram oficialmente ajustes, adaptando o ideal de comportamento clerical às práticas cotidianas. Neste sentido, em Latrão IV, o mesmo cânone que restringe a conduta sexual do clero apresenta outro aspecto importante, aparentemente contraditório se comparado com o conjunto de prescrições papais: aqueles clérigos que, conforme o costume de sua região, não precisassem renunciar ao matrimônio, deveriam manter a continência dentro de um relacionamento conjugal legítimo.

Essa prescrição parece contradizer o conjunto de sanções previstas pelos reformadores romanos quanto à questão da convivência de clérigos com mulheres desde o primeiro concílio geral da Igreja do Ocidente, o já citado lateranense I. Como interpretar a concessão feita pelo cânone 14 de Latrão IV? Em primeiro lugar, esse cânone aponta para o fato de que a continência não se refere somente à total abstinência sexual e possuía, para o papado, um sentido mais amplo que valida o oficio clerical, apesar da tendência de associar continência[1] e celibato.

Portanto, a definição de continência dependia do contexto lingüístico no qual e para o qual foi elaborado. Assim, nem todos os clérigos deveriam ser celibatários, mas a todos os clérigos era exigida a moderação e a discrição no que concerne ao corpo, ou seja, deveriam adotar a continência como modo de vida. Em segundo, há que realçar a capacidade de adaptação das normas da Igreja Romana quanto ao celibato face às novas condições históricas.

Desde 1054, entre outros motivos, as disputas entre Ocidente e Oriente giravam em torno da imposição do celibato. As autoridades romanas eram mais restritivas do que os bizantinos quanto ao casamento clerical. Contudo, depois de várias disputas, no início do século XIII, a Igreja Romana havia momentaneamente restabelecido vínculos com a Igreja do Oriente. Desta maneira, o clima de relativa concórdia e aliança entre estas duas Igrejas abriu uma fenda no conjunto das prescrições elaboradas pelos reformadores romanos, permitindo uma flexibilização no tocante ao matrimônio dos clérigos.

À luz destas constatações, algumas questões: em que outras situações as práticas cotidianas dos clérigos divergiam dos ideais de continência e celibato papais? De que maneira a cúria pontifícia respondeu aos clérigos incontinentes e/ou casados? Como respondia às denúncias de casamento clerical? A partir da análise de casos particulares, reconstruídos por meio das decretais emitidas pelo papado durante o governo de Inocêncio III (1198-1216), é possível traçar algumas considerações sobre as questões aqui levantadas.

Fonte: SILVA, A. C. L. F. da; LIMA, M. P. A Reforma Papal, a continência e o celibato..., in: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 37, p. 83-109, 2002. Editora UFPR.


[1] A noção medieval de continência provém do verbo latino continere, que significava conter, manter, reter, conservar, sustentar, encerrar, guardar, moderar, refrear, reprimir etc. Logo, uma pessoa continente, seguindo a raiz etimológica e o sentido cristão do termo, era aquela que encerrava, incluía em si, a manutenção das virtudes da abstinência, da privação dos prazeres e da moderação nas palavras, gestos e atos no cotidiano. Na documentação papal, este vocábulo oscila: ora significando total abstinência do prazer e a tudo que ele se refere, inclusive o ato sexual, ora designando apenas moderação e equilíbrio no comportamento exterior, sem que se excluísse alguma relação com a prática sexual.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Paraíso e suas fundamentações

Etimologicamente, paraíso deriva do persa ‘pardê’ ou ‘pairidaeza’, que significa recito, jardim, pomar circundado de muros. Em hebraico, emprega-se o termo ‘gan’, que significa vergel, ou seja, uma terra fértil, rica de água e vegetação. A Septuaginta o traduziu por ‘paràdeisos’, as antigas versões latinas e S. Jerônimo por ‘paradisus, as línguas modernas por ‘paradiso’, ‘paraíso’, ‘paradis’, ‘Paradies’, ‘paradise’.
Segundo a ciência das religiões, a representação do paraíso está presente em quase todos os povos, nos relatos e nos mitos da criação do homem. Geralmente, o paraíso corresponde a um período ou a um lugar em que os antepassados viveram em total harmonia com a criação, com a divindade, consigo mesmos, sem trabalhar, sem sofrimentos físicos e morais, sem a experiência da morte.
Esta condição ideal de existência foi perdida em decorrência de uma desobediência dos antepassados a uma ordem divina, e será recuperada ao final dos tempos, após um juízo universal.
No islã, o paraíso é a morada eterna dos fiéis, após a ressurreição e o juízo final. Para o masdeísmo, o paraíso corresponde a uma transfiguração do mundo, em conclusão do drama cósmico. Nas religiões orientais do budismo e do hinduísmo, o paraíso é concebido como ‘nirvana’, como superação do efêmero, do transitório, do precário, e portanto da dor e da morte. O paraíso está substancialmente dentro do homem, como realização do eu espiritual e divino.
Para o AT, o texto bíblico fundamental é o relato javista da criação de Gn 2, em que se diz que Deus colocou o homem no jardim (2,8), para que desfrute da árvore da vida, e que o expulsou dele por causa da desobediência ao que ele prescrevera. (3,23).
Este relato tem analogias com os relatos dos povos orientais, mas deles se distingue pelo fato de os protagonistas e o ambiente da história humana perderem o halo mítico e adquirirem feições conhecidas e determinações concretas: o jardim de Deus é um espaço geograficamente determinado, e os progenitores desempenham atividades humanas normais. O mito sofre uma transformação histórico-salvífica e é utilizado para elaborar uma etiologia do ingresso do m al n o mundo, e uma espécie de teodiceia universal, para retirar de Deus a responsabilidade pelo mal físico e moral.
Nos outros textos do AT, o paraíso é um termo empregado para indicar a fecundidade e a alegria. Com base na convicção de que o tempo do fim será como o tempo do início, os profetas recorrem à imagem do paraíso, para representar o futuro de felicidade e de paz do povo messiânico (Ez 36,35; Is 51,3).
A apocalíptica judaica indica como paraíso um ‘jardim de delícias’, no qual cresce a árvore da vida e no qual estão protegidos os justos, à espera do dia do juízo e da ressurreição final. É nesse contexto que deve ser entendido o termo paraíso nas parábolas de Jesus, quando promete este jardim a um dos ladrões crucificados com ele: ‘em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso’ (Lc 23,43). Por paraíso, Jesus entende a salvação e a vida eterna, que consiste em estar com Ele, novo Adão (Rm 5,14; !Cor 15,45) que venceu a antiga serpente (Ap 20,2) e que introduziu toda a humanidade no estado da salvação escatológica.
O termo paraíso, no NT, encontra-se outras duas vezes: em S. Paulo, que, para expressar uma experiência mística própria, diz de si mesmo que ‘foi arrebatado ao paraíso’ (2Cor 12,4), e no Apocalipse, em que se afirma que Cristo ressuscitado ‘ao vencedor dará de comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus’ (Ap 2,7).
Embora no NT paraíso indique a morada dos justos que esperam o dia do juízo, a linguagem e a tradição cristãs, contudo, comumente empregaram essa expressão para indicar a vida eterna com Deus em Cristo e a condição dos justos que vivem eternamente com Deus. A própria liturgia das exéquias ao fazr a despedida do morto, pede: ‘in Paradisum deducant te angeli’, que os anjos te levem ao paraíso.
O Catecismo da Igreja Católica, por sua vez, considera o paraíso como ‘justiça original’ (n. 376), ou seja, a amizade da pessoa com o Criador e a plena harmonia consigo mesmo e com a criação (n. 374). ‘Interpretando de maneira autentica o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, a Igreja ensina que os nossos primeiros pais Adão e Eva foram constituídos em estado de santidade e justiça original. Esta graça da santidade original era uma participação da vida divina’ (n. 375). Nesse estado de justiça original, ‘o homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à autoafirmação contra os imperativos da razão’ (n. 377).
Fonte: SANNA, I., Paraíso, in: Lexicon - dicionário teológico enciclopédico, São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 569-570.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Inferno – Fundamentos bíblicos



Durante muito tempo o Antigo Testamento deu muito pouca informação sobre a vida dos falecidos. Segundo ele, o mundo inferior é o lugar aonde vão os bons e os maus. Todos devem descer àquele lugar, os reis e os mendigos, os senhores e os escravos, os anciãos e os jovens, os justos e os injustos. O mundo inferior é o lugar de congregação de todos os falecidos. Seus habitantes levam uma consciência sombria. Os homens vivem ali em paz, pois não sofrem, mas tampouco gozam de alguma delicia. Esta representação dominou a fé do Antigo Testamento até o período helenista. Já nos livros véteros-testamentários do tempo helenista e entre os contemporâneos de Jesus encontramos a convicção de que os falecidos bons são recebidos no seio de Deus, ao passo que os ímpios são castigados no mundo inferior (Dn 12,2; 2Mc 6,26s; Sb 4,19; 5, 3-13).

A ameaça do juízo no vale de Hinom (Jr 7,32; 9,6; Is 66,24) fez com que, desde o século II, este vale fosse considerado como o lugar que haveria de abrir-se no juízo final e envolver no castigo de seu fogo os israelitas rebeldes. As expressões ‘o verme que não morre’ e o ‘fogo que não se apaga’ (Is 66,24) se transformaram na base para a concepção da pena. Isso aparece, por exemplo, em Jt 16,21; Dn 12,2, também em Mc 9,47s. Ainda no período pré-cristão, a palavra geena foi aplicada ao inferno de fogo do final dos tempos.

Desta forma, no Novo Testamento sob a palavra geena se entende o lugar do castigo eterno a partir do juízo final, lugar que está reservado ao demônio (Mt 25, 41) e a todos os que se negam a crer e a converter-se (Mt 5,29; 13,42; 22,13). João Batista e depois Jesus atestam que aos que não se converterem os espera o fogo que não se extingue (Mt 5,22; 18,9; 13, 42.51; Lc 3, 7.9; Mt 3, 10-12; Mc 3, 28). O inferno também é descrito com as palavras ‘trevas’, ‘gemidos’ e ‘ranger de dentes’ (Mc 9, 42-48; Mt 5, 29s; 18,8s; Mt 7, 13s; 8, 12; 22, 13; 25,3; 25, 30; 24, 51; 13, 41s; 22, 31). O inferno é uma desgraça tão terrível para os homens que todo esforço para se libertar dele deve ser considerado pequeno (Mt 5, 29s; 10, 28; Lc 16, 19-31). Em sua descrição antecipada do juízo final, Jesus diz: ‘quando o Filho do  homem vier em glória com todos os seus anjos, então se assentará no seu trono glorioso e todas as nações se reunirão em sua presença e ele vai separar uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Às ovelhas colocará À direita e os cabritos à esquerda... Depois dirá aos da esquerda: ‘afastai-vos de mim, amaldiçoados, para o fogo eterno, preparado para o diabo e sus anjos..’ e estes irão para o sofrimento eterno (Mt 25,31-33.41.46).

Segundo Paulo, o juízo trará para os condenados a perdição eterna (2Ts 1,9; 1 Ts 5,3; 1Tm 6,9). O ocaso (Rm 9,22; Fl 3,19). Os condenados são os perdidos (2Ts 2,10; 1Cor 1,18; 2Cor 9,15; 4,3). Paulo não dá muita informação sobre a maneira da perdição.

De qualquer forma, o apóstolo diz acerca dos condenados que estão sob a ira de Deus (2Ts 1,7-10; 2,3-10; Rm 2,5; 3,5; 2,8; 5,9; 9,22; 1Cor 3,17; Ef 5,6; Gl ¨,7; Cl 3,6). Os réprobos vivem atormentados e angustiados (2Ts 1,6-9; Rm 2, 6-9). Sua existência, longe de ser vida, é morte (2Cor 2,16; 7,10; Rm 1, 32; 6, 16.21.23; 8,6.13). Eles estão excluídos do reino de Deus (Gl 5,21; 1Cor 6,9; Ef 5,5). Estão longe da face do Senhor e da glória de seu poder (2Ts 1,9; Rm 3,23; 2Pd 2,3s; 3,7; 2,13; 3,6; Jd 17). Alguns trechos do Apocalipse de João (Ap 14,10; 19,20; 20,10-15; 21,8), apoiando-se seguramente na narração vétero-testamentária se Sodoma e Gomorra, descrevem o inferno como um lago de fogo e enxofre. João fala do pecado que leva à morte eterna (1Jo 5,14-17). Assim como se deve entender ‘vida’ como comunidade com Cristo, assim também por ‘morte’ se deve entender a supressão da comunidade com Ele.

Fonte: SCHMAUS, M. A fé da Igreja, Petrópolis: Vozes, p. 224-225, v. VI.

Purificação depois da morte nos relatos bíblicos – Purgatório



Naturalmente, a Escritura só pode fazer insinuações sobre uma purificação além da morte desde o momento em que começou a atestar a sobrevivência do homem em união com Deus. Tanto o Antigo como o Novo Testamento não oferecem senão insinuações. Poderíamos ver uma destas no segundo livro dos Macabeus (2Mc 12, 40-46). Tendo-se encontrado sob as túnicas dos falecidos na guerra objetos consagrados aos ídolos, rezou-se para que lhes perdoasse totalmente os pecados. O nobre Judas mandou organizar uma coleta recolhendo duas mil dracmas. O dinheiro foi enviado a Jerusalém, para que ai se oferecesse um sacrifício de expiação. O autor do relato acrescenta esta observação: ‘Com ação tão bela e nobre ele tinha em consideração a ressurreição, porque se não cresse na ressurreição dos caídos, teria sido coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Além disso, considerava a magnífica recompensa que está reservada àqueles que adormecem com sentimentos de piedade. Santo e pio pensamento’.

No Novo Testamento refere como Jesus falou de um pecado que não se perdoa nem neste mundo nem no outro. É o pecado contra o Espírito Santo, isto é, a negativa consciente a Jesus Cristo e a sua obra (Mt 12,32; Mc 3, 29; Lc 12, 10; Lc 12, 58). E se pode interpretar as palavras de Jesus no sentido em que há pecados perdoáveis no outro  mundo. Talvez seus ouvintes lembraram o texto do segundo Macabeus. Paulo escreve na primeira Epístola aos Coríntios: ‘Pois quanto ao fundamento, ninguém pode por outro senão aquele que está posto, que é Jesus Cristo. Se sobre este fundamento alguém edifica ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno, palha, a sua obra ficará manifesta, pois em seu dia o fogo o revelará, e provará qual foi a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamento resistir, o autor receberá o prêmio e aquele cuja obra for consumida sofrerá o dano; ele, todavia, se salvará, mas como quem passa pelo fogo’ (1Cor 3,11-15). Esta passagem não constitui um testemunho imediato a favor do purgatório. Contudo pode-se tirar a seguinte consequência: quem é indolente em sua fé, se salvará quando chegar o dia do Senhor, mas só a muito custo, como quem recebe queimaduras ao atravessar as chamas. E se no dia do juízo universal ainda é possível uma purificação, sem dúvida, podemos concluir que esta é muito mais possível no período intermédio.

Fonte: SCHMAUS, M. A fé da Igreja, Petrópolis: Vozes, p. 217, v. VI.

domingo, 27 de outubro de 2013

A doutrina do EX OPERE OPERATO



Contra os reformadores, o Concílio de Trento ensinou: ‘Se alguém afirmar que os sacramentos da nova lei não conferem a graça ex opere operato, mas só a fé na promessa divina é suficiente para obter a graça, A.S.’ (DS 1608).

Trento quer responder aos reformadores, os quais afirmavam que a palavra e a fé são veículos suficientes da graça. Trento recusa-se a fazer depender a graça unicamente da fé do ministro e do sujeito, pois ex opere operato significa que através da ação da Igreja o próprio Cristo age em nós.

Depois do Concílio de Trento, por vezes, os teólogos católicos separaram o ex opere operato do ex opere operantis, dando a impressão de que o rito sacramental é mecanicamente eficaz. Esqueceu-se que a eficácia dos sacramentos, embora não dependa da disposição daquele que os recebe ou ministra como causa da graça, contudo depende desta disposição como condição. Isso teve conseqüências funestas na pastoral, até nossos dias. Com essa compreensão só importa sacramentalizar, mesmo que o sujeito esteja morto ou lhe falte a devida disposição. Tal prática é o que, a rigor, chamamos de sacramentalismo, que nada menos é do que uma depravação dos sacramentos.

O sentido do ex opere operato tridentino é mais profundo. Quer sublinhar o primado da graça e a iniciativa de Deus na salvação. O teólogo Ch. Moehler, no século passado, interpretou muito bem o ex opere operato no sentido ex opere Christo operato.

A doutrina do ex opere operato diz, pois, algo fundamental sobre o próprio homem. Este não se realiza só no dar, mas também no receber. O fazer e a técnica, na ordem da salvação, não são a última palavra. O homem deve estar disposto a receber. É dado a sim mesmo a partir de uma liberdade, que no fundo, é a liberdade de dizer ‘Pai’. A causa da graça dos sacramentos não é o próprio homem e seus méritos, mas Deus. É Cristo quem batiza, quem perdoa. Em outras palavras, o ex opere operato não significa magia. Segundo esta, os ritos possuem uma força secreta em si mesmos, atuando a favor ou contra os homens. Mas, quando a Igreja se engaja como um todo, sua ação é eficaz, porque Cristo age através dela, independentemente de suas virtudes ou fraquezas. A presença da graça no mundo não depende das disposições subjetivas de quem recebe ou ministra um sacramento. O ex opere operato garante que o ‘sim’ definitivo de Deus aos homens não é colocado em perigo pela indignidade humana.

O ex opere operato significa, pois, que o próprio Cristo age nos sacramentos, às vezes, até mesmo através de homens indignos. O Senhor é fiel. O Sacramento é garantia de sua fidelidade. Mas, Cristo não nos salva sem nós, sem a nossa generosa colaboração, sem a nossa fé. Sem fé, não há sacramento. A graça sacramental pressupõe a fé, mas esta não produz graça. Nesse sentido, a doutrina do ex opere operato elucida um aspecto importante, mas deve ser visto no contexto global.


Fonte: ZILLES, U. Os sacramentos da Igreja, Porto Alegre: Ed. PUC-RS, 2001, (Coleção Teológica).

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os principais títulos bíblicos de Jesus (Parte IV) - O Senhor



A expressão ‘Senhor’ nos reporta ao uso pós-pascal, onde a palavra assume alcance superior, designando a Jesus na soberania manifestada por sua elevação ‘à direita de Deus’ (Lc 1, 43; 2, 11.26; 7,13) Ele é o Senhor a quem se invoca (At 7, 59s), ‘o Senhor de todos’ (At 10,36). A expressão Senhor passa a ter uma equivalência equivalente a ‘Deus’ (‘Meu Senhor e meu Deus!’ – Jo 20, 28). E devemos acentuar a confissão  cristã: ‘Se teus lábios confessam que Jesus é Senhor e se teu coração crê que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo’ (Rm 10,9). O senhorio de Jesus não elimina o de Deus Pai, mas diz que a partir da ressurreição se exprime a comunhão de Jesus com a soberania do Pai.

Na origem desse uso não está à influência do helenismo, que assim intitulava as divindades ou os imperados. O termo YHWH (e Adonai) foi traduzido pela expressão grega KYRIOS na LXX[1]. Pois, ele é verificado a comunidade palestinense anteriormente a qualquer possível influência helenística (E, ouvindo o rei Davi todas estas coisas, muito se lhe acendeu a ira - 2 Samuel 13, 21; Então tinha o rei Davi saudades de Absalão; porque já se tinha consolado acerca da morte de Amnom 2 Samuel 13, 39). Do primitivo uso palestinense ficou a invocação aramaica ‘Marana thá’ (Vem, Senhor)[2].

Fonte: GOMES, C. F.; Riquezas da Mensagem Cristã. Rio de Janeiro: Edições ‘LUMEN CHRISTI’, 1989, p. 304.


[1] ‘Aqui também, na tradução grega dos LXX, encontramos ao lado do uso profano da palavra Kyrios, seu emprego em sentido absoluto, onde Kyrios torna-se o nome de Deus e serve para traduzir Adonai e JHWH (CULLMANN, O. Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Editora Liber p. 264).
[2] Verbete MARANATHA, Dicionário Bíblico, John Mackenzie, p. 579-580, 1983; Na língua corrente, mari é uma maneira particularmente respeitosa de dirigir-se a alguém, algo assim como rabbí, que se emprega da mesma maneira. (...) não temos o direito de negar a priori a possibilidade de uma evolução análoga para a palavra aramaica mari: este vocábulo, que ao princípio só denotava as relações entre Jesus e seus discípulos durante sua vida terrestre, pôde chegar ao Kyrios Iesous (...) Não podemos trazer a prova desta evolução senão quando examinarmos a fé pós-pascal da comunidade no Cristo glorificado. Se os discípulos que, durante a vida de Jesus, haviam simplesmente expressado com as palavras ‘meu Senhor’ sua reverência pelo mestre, depois de sua ressurreição empregaram o mesmo termo para designar o Cristo glorificado presente em seu culto, e para reconhecer diante d’Ele um direito total sobre eles, temos um fundamento para admitir uma passagem, sobre o próprio terreno do cristianismo, do aramaico mari ao grego kyrios. Em se tratando de mostrar que, por analogia ao kyrios helenístico e ao Adon hebraico, é filologicamente possível que a palavra aramaica mar, empregada primeiro em sentido profano, tenha sido por fim empregada no sentido teológico do grego kyrios, com a condição de que, todavia, esta evolução teológica valesse já para os discípulos palestinos, que falavam aramaico. Ora, veremos que se deve admiti-lo. O elo que une, do ponto de vista teológico e filológico, mari e kyrios, é a invocação cultual aramaica Maranatha (CULLMANN, O. Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Editora Liber p. 266-267).