domingo, 13 de outubro de 2013

O Evangelho deve ser demitizado, segundo Bultmann



Foi no ano de 1941, em plena guerra, que Rudolf Bultmann (1884-1976) apresentou uma comunicação, com o título Novo Testamento e Mitologia, abrindo um intenso debate teológico que, de certa forma, subsiste até hoje. Bultmann parte dos pressupostos luteranos sola fides e sola scriptura para desenvolver um projeto capaz de interpretar a Escritura mantendo a pureza da Palavra para torná-la significativa e compreensível para o mundo de seu tempo. Segundo sua análise, todo o discurso neotestamentário está marcado pelo caráter mitológico. “Não podemos utilizar a luz elétrica e o rádio, ou, em caso de doença, recorrer às modernas descobertas médicas e clínicas e, ao mesmo tempo, acreditar no mundo dos espíritos e dos milagres que o Novo Testamento nos propõe”. A compreensão bultmanniana de mito é herdada de Strauss. Para este, o mito é o revestimento das ideias cristãs mais primitivas, formuladas através de uma inocência poética. O projeto de Strauss, agora assumido e radicalizado, é libertar a vida de Jesus de sua apresentação mítica.

Bultmann está mais além do otimismo da teologia liberal que acreditava ser possível reconstruir a personalidade autêntica de Jesus a partir da crítica histórica. O acesso ao Jesus histórico, na compreensão bultmanniana, está vedado, impossível de ser encontrado e o motivo é simples, faltam fontes. E também do ponto de vista teológico não é possível acessar Jesus. Ocorre que a fé não tem uma relação necessária com o que Jesus fez ou disse enquanto um ser historicamente existente, e sim com a pregação da ação de Deus a partir do Cristo, ou seja, já fora da história. Mais ainda, também do ponto de vista exegético é impossível reconstituir uma “vida de Jesus”. Os evangelhos não são documentos unitários e sim conjuntos de unidades das primeiras pregações, como fruto de uma tradição viva e obra de uma comunidade de crentes. Por isso, a tarefa da exegese não é se perder na busca da pregação mais original de Jesus, mas de trazer os efeitos dessa pregação que originou a própria pregação dos primeiros crentes. A tarefa da exegese é encontrar essas primeiras unidades independentes, as formas, para tirá-las dos textos já elaborados e situá-las no seu contexto vital e assim fazer evidenciar seus significados. A grande missão da exegese e da teologia é essa. Missão que Bultmann encarou com seriedade. Em vista disso, ele sentiu a necessidade de demitizar os textos bíblicos, especialmente os evangelhos. “Se o anúncio do Novo Testamento deve conservar uma validade própria, não há outra saída senão demitizá-lo.”

Nesse processo de demitização, amplo e árduo, cabe ao teólogo se livrar de tudo aquilo que é mito, ou seja, a narrativa dos eventos, para chegar ao seu sentido mais profundo, a mensagem. O trabalho de demitização tem dupla função: a primeira, função negativa, é de estabelecer uma crítica da imagem do mundo, tal como expressa o mito, e, por extensão, da imagem mítica do mundo como está expressa na Bíblia; a segunda, função positiva, é trazer para o ouvinte moderno uma interpretação esclarecida da verdadeira intenção do mito e das escrituras bíblicas. O mito é caracterizado como experiências internas ou subjetivas de um encontro com o absoluto, como um fato acontecido no mundo, falando de uma causalidade sobrenatural que opera como e entre as demais causas naturais dos fenômenos, produzindo assim uma aparente duplicidade histórica: a profana, na qual não parecem atuar senão as causa naturais, e uma história “sagrada”, em que se tem em conta e se narra as interrupções da história profana provocadas por intervenções da causalidade sobrenatural. O problema é que essa duplicidade histórica, aceita até a época medieval, não encontra mais respaldo no novo conceito de história da modernidade. 

Como bem observa Juan Luis Segundo, o verbo “demitizar” é enganador. Não é possível pura e simplesmente se desvencilhar de toda a narração mítica. O esforço deve ser outro: o de interpretar o sentido do mito. Há que se reforçar essa necessidade a partir daquilo que era a consciência do próprio Bultmann, bem como dos teólogos desde a modernidade, “o homem moderno, educado numa mentalidade científica, não pode aceitar tais mitos”. A intenção de Bultmann é fazer com que o mito seja significativo, não a partir da sua narrativa exterior, mas naquilo que ele suscita interiormente, no nível existencial. E para isso ele propõe voltar a colocar no interior, no “existencial”, o que o mito projetou no exterior, no reino dos objetos e acontecimentos objetivos. Assim, o fato ou o acontecimento, conserva seu valor decisivo e teológico.
O processo de demitização dos evangelhos tem como função lapidar toda a narrativa sobre Jesus a fim de chegar ao seu núcleo central: a proclamação do querigma. Para Bultmann, é exclusivamente no querigma que Deus se revela.

Fonte: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/16459/16459_3.PDF

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