Como é sabido, em sua origem a teologia
da cruz foi expressão cunhada por Lutero e foi definida em contraposição a
teologia da glória. Nesta contraposição se vê plasmada a essência do pensamento
religioso de Lutero. Isso quer dizer que estas expressões faziam parte do
pensamento do professor de Wittenberg num sentido que vai além da estrita
significação dos termos usados. A teologia da cruz não significa para Lutero
aquilo que pode significar para qualquer autor católico; com esta expressão,
Lutero designa um método de teologia dialética, um critério formal.
Este critério está marcada antes de tudo
pela oposição e incompatibilidade entre a inteligência natural e a Revelação,
como o próprio Lutero faz notar já na Disputa de Heidelberg. Por isso chama de
teologia da glória a teologia mística e a teologia especulativa, e inclusive
como parte essencial de sua teologia da cruz contida sob o aforismo ‘sub
contraria specie’, aforismo igualmente considerado pano de fundo de sua
elaboração teológica. Desta forma, Lutero atribui a teologia da cruz como
marcada por duas linhas: incompatibilidade entre o conhecimento natural e
sobrenatural, por uma parte, e total alteridade de Deus com relação ao mundo, de
outro. Esta alteridade leva, como consequência, a presença tanto de uma fé mais
pura quanto como absurda se poderia perceber no senso comum, e diga-se que a
justiça de Deus é tanto mais justa quanto mais injusta pode aparecer. Convém
fazer notar que Lutero interpreta a partir destes pressupostos quando os
evangelistas narram do acontecido na cruz e, concretamente, a palavra Meu Deus,
meu Deus, por que me abandonastes? (Mc 15,34). Isto explica que a cruz enquanto
suplício e trono de glória, seja considerada por Lutero unilateralmente como um
desprendimento, e que apresenta Cristo como aquele que sofre pela ira do Pai,
padecendo autenticamente, em substituição meramente legal. Os tormentos do
inferno.
Lutero grita uma vez ou outra: ‘Crux
sola est mostra theologia’; Crux Christi única est erudito verborum Dei, teologia
syncerissima’; Nostra teologia est teologia crucis’, e estas expressões parecem
fazer eco aquelas palavras de São Paulo: ‘Julguei não dever saber coisa alguma
entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado’ (1Cor, 2,2). No
entanto, Lutero afirma ser incompatíveis estas palavras com aquelas outras,
também paulinas, contidas em Rm 1,20: ‘Desde a criação do mundo, as perfeições
invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à
inteligência, por suas obras’.
Num olhar mais amplo, é evidente que
ambos os textos não só são incompatíveis, senão que se encontram numa estreita dependência.
A teologia pode por em relevo esta mútua dependência na medida em que ela mesma
se deixe fecundar pelas ‘palavras divinas’ que explicam o porque e o sentido
dos acontecimentos salvíficos, isto é, na medida em que a cruz é contemplada
nas coordenadas em que a situa na divina revelação. O próprio Jesus, como nos
narra são João, explica que sua morte na cruz se deve ao amor que Deus tem a
este mundo (Jo 3,16), aos homens, criados a imagem e semelhança sua (Gn 1,26).
A cruz se insere numa economia de aliança selada com o sangue. Esta Aliança é fruto
do amor de Deus, ‘amor mais forte que a traição, graça mais forte que o pecado’.
‘Deus não odiais nada o que fizestes’ (Sb 11,24). Estas palavras – comenta João Paulo II – indicam o fundamento
profundo da relação entre a justiça e a misericórdia de Deus, em suas relações
com o homem e com o mundo. Nós devemos buscar as raízes vivificantes e as
razões íntimas desta relação, voltando-nos ao princípio, no próprio mistério da
criação’.
A transcendência de Deus não pode ser
confundida com a alteridade, com o totalmente outro que se revela ocultando-se
sob a aparência contraditória. Deus ama realmente aquilo que fez e, por isso,
quando fez foi realmente verdadeiro, bom
e belo. Desta forma particular, sucede isto no homem, criado a imagem e
semelhança de Deus, capax Dei, e chamado a dignidade de Filho. Perdida esta
dignidade pelo pecado, é restituída pela Redenção. ‘O pai do filho pródigo –
como comenta João Paulo II - , é fiel na paternidade, fiel ao amor que desde
sempre sentia pelo filho’.
Daí que a alegria sempre esteja presente
na mensagem de Cristo, essencialmente boa nova, Evangelho. Embora seja verdade
que a cruz atenue a gravidade, em certo modo, infinita do pecado, ela é antes
de tudo a revelação do amor onipotente, capaz de restaurar no homem em sua
dignidade de filho.
Tradução: Roberto Marcelo da Silva
Fonte: MATEO-SECO, L.F. Teologia de la cruz, in: SCRIPTA THEOLOGICA 14(1982/1) 168-171
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