terça-feira, 15 de outubro de 2013

Teologia da cruz em Lutero



Como é sabido, em sua origem a teologia da cruz foi expressão cunhada por Lutero e foi definida em contraposição a teologia da glória. Nesta contraposição se vê plasmada a essência do pensamento religioso de Lutero. Isso quer dizer que estas expressões faziam parte do pensamento do professor de Wittenberg num sentido que vai além da estrita significação dos termos usados. A teologia da cruz não significa para Lutero aquilo que pode significar para qualquer autor católico; com esta expressão, Lutero designa um método de teologia dialética, um critério formal.

Este critério está marcada antes de tudo pela oposição e incompatibilidade entre a inteligência natural e a Revelação, como o próprio Lutero faz notar já na Disputa de Heidelberg. Por isso chama de teologia da glória a teologia mística e a teologia especulativa, e inclusive como parte essencial de sua teologia da cruz contida sob o aforismo ‘sub contraria specie’, aforismo igualmente considerado pano de fundo de sua elaboração teológica. Desta forma, Lutero atribui a teologia da cruz como marcada por duas linhas: incompatibilidade entre o conhecimento natural e sobrenatural, por uma parte, e total alteridade de Deus com relação ao mundo, de outro. Esta alteridade leva, como consequência, a presença tanto de uma fé mais pura quanto como absurda se poderia perceber no senso comum, e diga-se que a justiça de Deus é tanto mais justa quanto mais injusta pode aparecer. Convém fazer notar que Lutero interpreta a partir destes pressupostos quando os evangelistas narram do acontecido na cruz e, concretamente, a palavra Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? (Mc 15,34). Isto explica que a cruz enquanto suplício e trono de glória, seja considerada por Lutero unilateralmente como um desprendimento, e que apresenta Cristo como aquele que sofre pela ira do Pai, padecendo autenticamente, em substituição meramente legal. Os tormentos do inferno.

Lutero grita uma vez ou outra: ‘Crux sola est mostra theologia’; Crux Christi única est erudito verborum Dei, teologia syncerissima’; Nostra teologia est teologia crucis’, e estas expressões parecem fazer eco aquelas palavras de São Paulo: ‘Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado’ (1Cor, 2,2). No entanto, Lutero afirma ser incompatíveis estas palavras com aquelas outras, também paulinas, contidas em Rm 1,20: ‘Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras’.

Num olhar mais amplo, é evidente que ambos os textos não só são incompatíveis, senão que se encontram numa estreita dependência. A teologia pode por em relevo esta mútua dependência na medida em que ela mesma se deixe fecundar pelas ‘palavras divinas’ que explicam o porque e o sentido dos acontecimentos salvíficos, isto é, na medida em que a cruz é contemplada nas coordenadas em que a situa na divina revelação. O próprio Jesus, como nos narra são João, explica que sua morte na cruz se deve ao amor que Deus tem a este mundo (Jo 3,16), aos homens, criados a imagem e semelhança sua (Gn 1,26). A cruz se insere numa economia de aliança selada com o sangue. Esta Aliança é fruto do amor de Deus, ‘amor mais forte que a traição, graça mais forte que o pecado’.

‘Deus não odiais nada o que fizestes’ (Sb 11,24). Estas palavras – comenta João Paulo II – indicam o fundamento profundo da relação entre a justiça e a misericórdia de Deus, em suas relações com o homem e com o mundo. Nós devemos buscar as raízes vivificantes e as razões íntimas desta relação, voltando-nos ao princípio, no próprio mistério da criação’.

A transcendência de Deus não pode ser confundida com a alteridade, com o totalmente outro que se revela ocultando-se sob a aparência contraditória. Deus ama realmente aquilo que fez e, por isso, quando fez foi realmente  verdadeiro, bom e belo. Desta forma particular, sucede isto no homem, criado a imagem e semelhança de Deus, capax Dei, e chamado a dignidade de Filho. Perdida esta dignidade pelo pecado, é restituída pela Redenção. ‘O pai do filho pródigo – como comenta João Paulo II - , é fiel na paternidade, fiel ao amor que desde sempre sentia pelo filho’.

Daí que a alegria sempre esteja presente na mensagem de Cristo, essencialmente boa nova, Evangelho. Embora seja verdade que a cruz atenue a gravidade, em certo modo, infinita do pecado, ela é antes de tudo a revelação do amor onipotente, capaz de restaurar no homem em sua dignidade de filho. 

Tradução: Roberto Marcelo da Silva

Fonte: MATEO-SECO, L.F. Teologia de la cruz, in: SCRIPTA THEOLOGICA 14(1982/1) 168-171

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